Entramos
em mais uma Olimpíada. De quatro em quatro anos vivemos, através das
lentes dos fotógrafos e das telas de TV, acontecimentos que mexem
emocionalmente com milhões de famílias pelo mundo. A torcida por seu
país, histórias de superação, derrotas inesperadas, vitórias
extraordinárias. Se o mundo dos esportes é fascinante, o dos esportes
olímpicos é hipnotizante.
Todo atleta olímpico tem sua história, e
ela é única. Caminhos parecidos entre atletas podem até se esbarrar,
mas jamais serão iguais. Família, treinamentos, técnicos, escola,
relacionamentos, contusões, traumas, tudo tem um peso diferente para
cada atleta. É difícil estabelecer certezas nas muitas vias que cada um
percorre até chegar a uma Olimpíada, mas é exatamente nas poucas e
profundas similaridades entre nós que percebemos que existe algo em
comum entre todos os que estão ali.
Como ex-atleta olímpica pelo
Brasil em quatro edições dos Jogos, não tenho resposta para as centenas
de perguntas que chegam até mim nesta época. Como mencionei, cada
história é única, mas creio que posso afirmar uma ou duas coisas sobre
esse mundo. Às vezes, assistindo aos Jogos com a família, os filhos
perguntam “Como você sabia que isso ia acontecer, que ele erraria?”,
“Como você sabia que ela recuperaria?”. A resposta é: não sei. Talvez
algo no olhar, na linguagem corporal, alguma intuição por já ter estado
lá e saber, na pele, o que pode estar passando naquele momento na cabeça
daquele atleta. Todos nós ali já vivemos um turbilhão de emoções: medo,
alívio, dor, alegria, decepção, dúvida, entorpecimento pela glória,
humilhação pela queda.
Meu primeiro contato com os Jogos
Olímpicos, e as emoções que eles podem trazer, foi em 1980, na Olímpiada
de Moscou.
No interior de Minas, em Lavras, lá estava a menina de 8
anos, aos prantos, assistindo à cerimônia de despedida daqueles Jogos
com o inesquecível ursinho Misha, que também derramava uma lágrima numa
coreografia feita pelo próprio público nas arquibancadas.
Ali foi apenas
o começo de um longo namoro e casamento com o esporte. Eu mal podia
esperar pela próxima edição, e logo veio a Olimpíada de Los Angeles, em
1984, que nos deu a geração de prata no vôlei masculino num jogo
inesquecível contra os donos da casa.
Mas aquela Olimpíada me deu muito
mais do que o amor necessário para querer defender o Brasil jogando
vôlei.
Ela me deu Gabriela Andersen. E eu nunca mais fui a mesma.
[Gabriela Andersen e Kerri Strug, lições de coragem, espírito esportivo, respeito à equipe, patriotismo...]
Assim
como as reuniões de família nesta semana para assistir aos eventos
esportivos de Tóquio, em 1984 estávamos todos em casa diante da TV para
acompanhar a chegada da maratona feminina. Foi quando Gabriela Andersen,
da Suíça, entrou no Coliseu de Los Angeles e mudou para sempre minha
alma de atleta.
Ninguém se lembra quem foi ouro, prata ou bronze naquela
prova, mas todos se lembram de Gabriela Andersen.
Os 30 graus
centígrados de calor e umidade de agosto em Los Angeles estavam
insuportáveis e longe das condições ideais para uma maratona. Além
disso, Gabriela, de alguma forma, havia perdido a estação de água no
caminho. Muito desidratada, a maratonista entrou no estádio olímpico
quase tropeçando nas próprias pernas. Ela se inclinava desajeitadamente
para a esquerda e para a direita, cambaleando através das raias da
pista. Foi uma visão desesperadora para os espectadores nas
arquibancadas e para os espectadores em todo o mundo que seguiam a prova
pela TV. Milhares de pessoas assistiam atônitas àquela cena e torciam
para que ela não desabasse. Diante daquela imagem emocionante e
agonizante, o estádio inteiro, agora de pé, começou a incentivar
Gabriela a completar a prova.
Seu marido, Dick Andersen,
acompanhava angustiado das arquibancadas, enquanto os oficiais e médicos
caminhavam ao lado dela perguntando sobre sua condição. Em entrevistas,
Gabriela lembra que essa era a primeira maratona feminina em Olimpíadas
e recorda o que dizia a si mesma: “’Tente continuar correndo’. ‘Tente
ficar ereta’. Mas meus músculos simplesmente não respondiam e tudo se
deteriorou nos últimos 400 metros. Nesse ponto, apenas pensei: ‘Estou na
Olimpíada, não pare!’.”
Enquanto ela cambaleava, os gritos de
incentivo de milhares de espectadores ficavam cada vez mais altos.
“Lembro-me claramente dos aplausos e do barulho. Foi simplesmente
incrível. Estava muito alto. Não esperava algo assim. Isso provavelmente
me manteve de pé também!” No dia 23 de agosto de 1984, em Los Angeles,
depois de 2 horas, 24 minutos e 52 segundos, Gabriela Andersen
finalmente alcançou a linha de chegada, caindo nos braços de três
médicos que a carregaram para fora da pista.
No mesmo 23 de
agosto de 1984, em Minas Gerais, uma menina de 12 anos está quase sem
conseguir respirar diante da TV, com os olhos cheios de lágrimas e
hipnotizada por aquele momento. Uma única coisa passava pela minha
cabeça: “Agora eu entendi”. Eu havia sido engolida pelo verdadeiro
espírito olímpico.
[Simone Biles, uma lição de egoísmo, falta de espirito esportivo, falta de solidariedade, covardia...]
Como em toda Olimpíada, um drama marcou Tóquio
nesta semana. A superestrela da ginástica e atual campeã olímpica Simone
Biles desistiu da competição individual geral dos Jogos para se
concentrar em seu “bem-estar mental”.
A decisão veio um dia depois que
Simone se retirou da final de equipe após uma apresentação bem abaixo do
esperado no salto.
Ao falar para a imprensa, ela citou sua saúde mental
como o motivo. Ao comunicar a saída de sua maior estrela, a federação
norte-americana de ginástica disse em um trecho da nota oficial: “Após
uma avaliação médica adicional, Simone Biles retirou-se da competição
individual geral final. Apoiamos de todo o coração a decisão de Simone e
aplaudimos sua bravura em priorizar seu bem-estar. Sua coragem mostra,
mais uma vez, por que ela é um modelo para tantos”.
Posso até
entender a decisão de Simone. Dramas psicológicos no mundo esportivo,
principalmente no universo da alta performance, não são raros. As
pressões são muitas, eu sei. Não conheço as condições psicológicas da
atleta e o que, de fato, a levou a tomar essa decisão. Posso
tranquilamente me solidarizar com suas possíveis batalhas internas, e
espero que ela saia desse redemoinho mental que, muitas vezes, pode ser
perigoso. Dito isso, meu problema com essa situação é outro. O
primeiro é o fato de que Simone não competia sozinha.
Ela fazia parte de
uma equipe que dependia dela, que se preparou e treinou durante anos
para este momento.
Com sua decisão, a atleta não prejudicou apenas o seu
caminho. Respeitaria muito mais as suas palavras se elas fossem
suportadas com o ônus de uma decisão individual.
Simone não fez isso.
Depois da performance com notas baixas na qualificação, ela desistiu. A
melhor ginasta do elenco dos EUA, uma das atletas olímpicas
norte-americanas mais festejadas de todos os tempos, optou por abandonar
seu time no meio da final.
Suas companheiras de equipe perderam o ouro e
terminaram em segundo, atrás da lendária rival na ginástica, a
arqui-inimiga Rússia. Medo do fracasso?
Na coletiva, com as
companheiras tentando mostrar algum apoio, mas ainda com os olhos
arregalados e um pouco perdidos, Simone Biles reclamou que a Olimpíada
não foi “divertida” neste ano: “Estes Jogos Olímpicos, eu queria que
fossem para mim mesma quando entrei e eu senti que ainda estava fazendo
tudo isso para outras pessoas”. Mais tarde, ela disse que é importante
“colocar a saúde mental em primeiro lugar” porque, se não o fizer, “você
não vai gostar do seu esporte” e reclamou da “pressão” que está
sofrendo.
Sinceramente? Não há nada de terrivelmente surpreendente
nas razões que ela apresentou. A pressão a que está submetida uma
atleta mundialmente famosa em um palco global é bastante pesada, tanto
no nível emocional quanto no físico. Não é um crime desistir sob
pressão, mas quando isso se tornou algo para ser admirado com profunda
reverência? Esse é meu segundo problema em todo esse evento.
Se
Simone Biles tivesse desistido da competição em equipe e se desculpado
após o fato, com um pouco mais de humildade, talvez o público reagisse
de outra maneira e o assunto seria encerrado. É difícil competir em
Olimpíadas. Todos nós temos, uma vez ou outra, vontade de desistir de
tudo. É por isso que, quando alguém desiste, normalmente balançamos a
cabeça e dizemos: “Que pena, sinto muito”, e seguimos em frente com
nossa vida.
Vitória não é apenas vencer os adversários e abraçar a glória, é superar os próprios limites
O
problema é que agora somos exortados a não apenas entender por que
alguém desiste de algo. Temos de aplaudi-lo por isso. O que torna a
história de Simone Biles preocupante não é que a equipe de ginástica
feminina teve de se contentar com uma medalha de prata — o que me
incomoda é o fato de que a atual mídia e partes da sociedade querem que
celebremos a covardia de um soldado ao abandonar seus companheiros no
campo de batalha. Poderíamos tranquilamente dizer: “Simone Biles
desistiu da Olimpíada, ela está com problemas. Que pena”. Mas o que
querem é que digamos: “Simone Biles desistiu. Não estará mais com o time
porque ela precisa pensar nela. Que ato corajoso!”.
Não, não, não
é corajoso. Pode ser humano, mas é o oposto de coragem. Ter coragem é
colocar o time acima de suas dores, físicas ou emocionais, quando você
já está comprometida com ele. Simone Biles poderia ter se inspirado na
ginasta Kerri Strug, também norte-americana, que competiu na Olimpíada
de 1996, em Atlanta. Na disputa por equipes, um evento dominado pelos
soviéticos por décadas e nunca vencido pelos Estados Unidos, os
norte-americanos competiriam com as seleções da Rússia, Romênia e
Ucrânia. Depois de um salto, Kerri aterrissou bruscamente e lesionou
dois ligamentos no tornozelo. Ela era a última peça do time que poderia
trazer o ouro para as norte-americanas. Diante da importante lesão, a
ginasta poderia ter desistido, mas se negou a abandonar a competição. A
equipe médica tentou estabilizar o tornozelo com esparadrapos, e Kerri,
com dois ligamentos comprometidos, saltou… Sim, o final é esse mesmo que
você está pensando. As norte-americanas venceram, e Kerri foi carregada
até o pódio para receber o tão sonhado ouro olímpico em equipes para a
ginástica dos EUA.
Entre muitos esportes olímpicos, talvez a
ginástica seja um dos mais cruéis com seus atletas. Além da pressão
física, há casos de supressões hormonais (para que as atletas não
cresçam) e até de assédio e abusos sexuais. Não sabemos o que sucedeu na
mente de Simone Biles, e ela não é uma vilã por ter desistido, mas
também não é uma heroína. Simone é o reflexo da atual sociedade, que
enaltece quem chora mais, quem se vitimiza e quem se ofende por tudo. Em
uma sociedade com balaios coletivistas, divididos em categorias
“negros”, “mulheres”, “gays” etc., é interessante ver que
aplausos, elogios e contratos de publicidade são dados àqueles que
colocam exatamente as suas necessidades e desejos pessoais em primeiro
plano.
Gabriela Andersen, hoje com 76 anos, em uma entrevista para
o canal oficial dos Jogos Olímpicos, disse que o que a surpreendeu foi a
compaixão e a reação dos espectadores e dos atletas. Ela relata que
estava com muita vergonha pela performance ruim (Andersen chegou em 37º
lugar, quase último) e que se sentia culpada. Ela achava que não merecia
tanta atenção. “Na época eu teria trocado por qualquer coisa entre o
10º e o 15º lugar para não ter aquilo que considerei apenas um
espetáculo”, disse. “Mas agora, olhando para trás, posso ver que as
pessoas se identificaram por causa da luta. Se você realmente se
dedicar, poderá superar muitos obstáculos. Há lição em tudo.”
Vitória
não é apenas vencer os adversários e abraçar a glória, muitas vezes
entorpecente e traiçoeira. É superar os próprios limites e, como
Gabriela Andersen, inspirar milhões a não desistir, mesmo chegando em
último lugar, mesmo com o ego ferido. O espírito olímpico é
justamente o da superação e do sacrifício, mesmo que isso não lhe traga
nenhum esplendor. E essa lição não fica restrita ao esporte, ela o
acompanha por toda a vida. Salve, Gabriela Andersen!
Leia também “Deixem os Jogos Olímpicos em paz”
Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste