Simone Biles é o reflexo da atual sociedade, que enaltece quem chora mais, quem se vitimiza e quem se ofende por tudo
Entramos em mais uma Olimpíada. De quatro em quatro anos vivemos, através das lentes dos fotógrafos e das telas de TV, acontecimentos que mexem emocionalmente com milhões de famílias pelo mundo. A torcida por seu país, histórias de superação, derrotas inesperadas, vitórias extraordinárias. Se o mundo dos esportes é fascinante, o dos esportes olímpicos é hipnotizante.
Todo atleta olímpico tem sua história, e ela é única. Caminhos parecidos entre atletas podem até se esbarrar, mas jamais serão iguais. Família, treinamentos, técnicos, escola, relacionamentos, contusões, traumas, tudo tem um peso diferente para cada atleta. É difícil estabelecer certezas nas muitas vias que cada um percorre até chegar a uma Olimpíada, mas é exatamente nas poucas e profundas similaridades entre nós que percebemos que existe algo em comum entre todos os que estão ali.
Como ex-atleta olímpica pelo Brasil em quatro edições dos Jogos, não tenho resposta para as centenas de perguntas que chegam até mim nesta época. Como mencionei, cada história é única, mas creio que posso afirmar uma ou duas coisas sobre esse mundo. Às vezes, assistindo aos Jogos com a família, os filhos perguntam “Como você sabia que isso ia acontecer, que ele erraria?”, “Como você sabia que ela recuperaria?”. A resposta é: não sei. Talvez algo no olhar, na linguagem corporal, alguma intuição por já ter estado lá e saber, na pele, o que pode estar passando naquele momento na cabeça daquele atleta. Todos nós ali já vivemos um turbilhão de emoções: medo, alívio, dor, alegria, decepção, dúvida, entorpecimento pela glória, humilhação pela queda.
Os 30 graus centígrados de calor e umidade de agosto em Los Angeles estavam insuportáveis e longe das condições ideais para uma maratona. Além disso, Gabriela, de alguma forma, havia perdido a estação de água no caminho. Muito desidratada, a maratonista entrou no estádio olímpico quase tropeçando nas próprias pernas. Ela se inclinava desajeitadamente para a esquerda e para a direita, cambaleando através das raias da pista. Foi uma visão desesperadora para os espectadores nas arquibancadas e para os espectadores em todo o mundo que seguiam a prova pela TV. Milhares de pessoas assistiam atônitas àquela cena e torciam para que ela não desabasse. Diante daquela imagem emocionante e agonizante, o estádio inteiro, agora de pé, começou a incentivar Gabriela a completar a prova.
Seu marido, Dick Andersen, acompanhava angustiado das arquibancadas, enquanto os oficiais e médicos caminhavam ao lado dela perguntando sobre sua condição. Em entrevistas, Gabriela lembra que essa era a primeira maratona feminina em Olimpíadas e recorda o que dizia a si mesma: “’Tente continuar correndo’. ‘Tente ficar ereta’. Mas meus músculos simplesmente não respondiam e tudo se deteriorou nos últimos 400 metros. Nesse ponto, apenas pensei: ‘Estou na Olimpíada, não pare!’.”
Enquanto ela cambaleava, os gritos de incentivo de milhares de espectadores ficavam cada vez mais altos. “Lembro-me claramente dos aplausos e do barulho. Foi simplesmente incrível. Estava muito alto. Não esperava algo assim. Isso provavelmente me manteve de pé também!” No dia 23 de agosto de 1984, em Los Angeles, depois de 2 horas, 24 minutos e 52 segundos, Gabriela Andersen finalmente alcançou a linha de chegada, caindo nos braços de três médicos que a carregaram para fora da pista.
No mesmo 23 de agosto de 1984, em Minas Gerais, uma menina de 12 anos está quase sem conseguir respirar diante da TV, com os olhos cheios de lágrimas e hipnotizada por aquele momento. Uma única coisa passava pela minha cabeça: “Agora eu entendi”. Eu havia sido engolida pelo verdadeiro espírito olímpico.
[Simone Biles, uma lição de egoísmo, falta de espirito esportivo, falta de solidariedade, covardia...]
Na coletiva, com as companheiras tentando mostrar algum apoio, mas ainda com os olhos arregalados e um pouco perdidos, Simone Biles reclamou que a Olimpíada não foi “divertida” neste ano: “Estes Jogos Olímpicos, eu queria que fossem para mim mesma quando entrei e eu senti que ainda estava fazendo tudo isso para outras pessoas”. Mais tarde, ela disse que é importante “colocar a saúde mental em primeiro lugar” porque, se não o fizer, “você não vai gostar do seu esporte” e reclamou da “pressão” que está sofrendo.
Sinceramente? Não há nada de terrivelmente surpreendente nas razões que ela apresentou. A pressão a que está submetida uma atleta mundialmente famosa em um palco global é bastante pesada, tanto no nível emocional quanto no físico. Não é um crime desistir sob pressão, mas quando isso se tornou algo para ser admirado com profunda reverência? Esse é meu segundo problema em todo esse evento.
Se Simone Biles tivesse desistido da competição em equipe e se desculpado após o fato, com um pouco mais de humildade, talvez o público reagisse de outra maneira e o assunto seria encerrado. É difícil competir em Olimpíadas. Todos nós temos, uma vez ou outra, vontade de desistir de tudo. É por isso que, quando alguém desiste, normalmente balançamos a cabeça e dizemos: “Que pena, sinto muito”, e seguimos em frente com nossa vida.
Vitória não é apenas vencer os adversários e abraçar a glória, é superar os próprios limites
O problema é que agora somos exortados a não apenas entender por que alguém desiste de algo. Temos de aplaudi-lo por isso. O que torna a história de Simone Biles preocupante não é que a equipe de ginástica feminina teve de se contentar com uma medalha de prata — o que me incomoda é o fato de que a atual mídia e partes da sociedade querem que celebremos a covardia de um soldado ao abandonar seus companheiros no campo de batalha. Poderíamos tranquilamente dizer: “Simone Biles desistiu da Olimpíada, ela está com problemas. Que pena”. Mas o que querem é que digamos: “Simone Biles desistiu. Não estará mais com o time porque ela precisa pensar nela. Que ato corajoso!”.
Não, não, não é corajoso. Pode ser humano, mas é o oposto de coragem. Ter coragem é colocar o time acima de suas dores, físicas ou emocionais, quando você já está comprometida com ele. Simone Biles poderia ter se inspirado na ginasta Kerri Strug, também norte-americana, que competiu na Olimpíada de 1996, em Atlanta. Na disputa por equipes, um evento dominado pelos soviéticos por décadas e nunca vencido pelos Estados Unidos, os norte-americanos competiriam com as seleções da Rússia, Romênia e Ucrânia. Depois de um salto, Kerri aterrissou bruscamente e lesionou dois ligamentos no tornozelo. Ela era a última peça do time que poderia trazer o ouro para as norte-americanas. Diante da importante lesão, a ginasta poderia ter desistido, mas se negou a abandonar a competição. A equipe médica tentou estabilizar o tornozelo com esparadrapos, e Kerri, com dois ligamentos comprometidos, saltou… Sim, o final é esse mesmo que você está pensando. As norte-americanas venceram, e Kerri foi carregada até o pódio para receber o tão sonhado ouro olímpico em equipes para a ginástica dos EUA.
Entre muitos esportes olímpicos, talvez a ginástica seja um dos mais cruéis com seus atletas. Além da pressão física, há casos de supressões hormonais (para que as atletas não cresçam) e até de assédio e abusos sexuais. Não sabemos o que sucedeu na mente de Simone Biles, e ela não é uma vilã por ter desistido, mas também não é uma heroína. Simone é o reflexo da atual sociedade, que enaltece quem chora mais, quem se vitimiza e quem se ofende por tudo. Em uma sociedade com balaios coletivistas, divididos em categorias “negros”, “mulheres”, “gays” etc., é interessante ver que aplausos, elogios e contratos de publicidade são dados àqueles que colocam exatamente as suas necessidades e desejos pessoais em primeiro plano.
Gabriela Andersen, hoje com 76 anos, em uma entrevista para o canal oficial dos Jogos Olímpicos, disse que o que a surpreendeu foi a compaixão e a reação dos espectadores e dos atletas. Ela relata que estava com muita vergonha pela performance ruim (Andersen chegou em 37º lugar, quase último) e que se sentia culpada. Ela achava que não merecia tanta atenção. “Na época eu teria trocado por qualquer coisa entre o 10º e o 15º lugar para não ter aquilo que considerei apenas um espetáculo”, disse. “Mas agora, olhando para trás, posso ver que as pessoas se identificaram por causa da luta. Se você realmente se dedicar, poderá superar muitos obstáculos. Há lição em tudo.”
Vitória não é apenas vencer os adversários e abraçar a glória, muitas vezes entorpecente e traiçoeira. É superar os próprios limites e, como Gabriela Andersen, inspirar milhões a não desistir, mesmo chegando em último lugar, mesmo com o ego ferido. O espírito olímpico é justamente o da superação e do sacrifício, mesmo que isso não lhe traga nenhum esplendor. E essa lição não fica restrita ao esporte, ela o acompanha por toda a vida. Salve, Gabriela Andersen!
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Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste
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