Estava pensando em dar à Fiocruz o prêmio “Republicano de 2020”.
Melhor não. Republicanos é o nome do partido de Crivella/Igreja
Universal, cujo comportamento não corresponde ao nome.
Assim, vamos dizer que a Fiocruz é merecedora do prêmio de
responsabilidade social e política, ao se negar a reservar doses de
vacina aos tribunais superiores. Inversamente, o Supremo Tribunal
Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do
Trabalho merecem o prêmio vexame do ano. Os egrégios tribunais
solicitaram oficialmente à Fiocruz a reserva de doses da vacina (7 mil
no caso do STF) para aplicação nos ministros e seus funcionários.
Em ofício, o diretor do STF, Edmundo Verdas dos Santos Filho, chegou a
dizer que a vacinação de ministros e funcionários contribuiria “com o
país” já que garantiria a “utilização dos recursos humanos e materiais
disponíveis no Tribunal para ajudar a desafogar outras estruturas de
saúde”.
É ridículo ter que argumentar contra isso, mas considerada a fonte,
vamos lá. Há muitas outras categorias cuja vacinação contribuiria mais
com o país. E é justamente essa regra que se utiliza em qualquer lugar
do mundo quando se organiza a fila da vacinação. E é óbvio que a reserva
das primeiras doses vai para o pessoal da saúde e para a sua turma de
apoio, o que inclui, por exemplo, maqueiros e motoristas de ambulâncias.
O diretor do STF lembrou, en passant, que muitos membros do tribunal
estão no grupo de risco. Desnecessário. Os grupos de risco vão para os
primeiros lugares. Mas na fila comum, para todos, e não para uma eventual fila exclusiva
de 7 mil membros do STF, a serem vacinados em locais da Corte,
especiais e separados do povão.[Não
será surpresa se algum dos ministros supremos - especialmente os
plantonistas extraordinários - determinar que as atividades dos
beneficiados com a vacina que pediram à Fiocruz (pedido já negado) -
ministros e servidores são essenciais = caso isso ocorra ficará a dúvida se a atividade dos servidores encarregados de afastar as cadeiras dos ministros, quando em plenário, para que se sentem, será considerada também essencial.???]
Dirão alguns leitores: mas por que se preocupa com questão tão pequena? Ocorre que não é só isso. Os privilégios não se limitam a isso. São
os salários acima do teto constitucional, são as férias de dois meses,
sem contar os recessos, são as mordomias. Isso se refere não apenas ao STF, mas à alta cúpula do serviço público que acha natural ter essas vantagens.
Refere-se também a uma elite política que, por exemplo, acha um
absurdo que um prefeito, um deputado, um senador ou um ministro possam
ser presos. A demanda por privilégios vai assim do pedido de reserva de vacinas
aos esforços para abafar o combate à corrupção. Isto inclui, por
exemplo: o engavetamento da lei de prisão em segunda instância, a
decisão do ministro Marques de encurtar o tempo de inelegibilidade dos
fichas-suja, o desmantelamento da Lava Jato.
E mais: o fato da elite política de Brasília considerar absolutamente
normal que um réu por corrupção, o deputado Arthur Lira, seja candidato
a presidente da Câmara dos Deputados. [um lembrete: importante destacar que um réu não é necessariamente culpado = no popular: qualquer denunciado por prática criminosa e que tem a denúncia aceita (sem julgamento, apenas com um exame preliminar do teor da denúncia) se torna réu. O réu se torna culpado quando, após o julgamento, é condenado.
A mais recente manifestação do Poder Judiciário sobre o deputado citado - que não goza de nossa simpatia nem antipatia - foi no sentido de arquivar um processo contra o mesmo = fosse réu no processo, deixou de ser.]
O que nos traz ao tema corrupção, outro assunto movimentado nestes
dias com a prisão do prefeito Marcelo Crivella. Isso num estado em que
seis ex-governadores foram apanhados por corrupção e lavagem de
dinheiro. Dinheiro público e da saúde. Até algum tempo se dizia que a corrupção era pequena e apenas um
problema moral. Errado. Primeiro, porque a Lava Jato mostrou o tamanho
da corrupção aqui no Brasil e no exterior. Segundo, porque há uma
estreita relação entre corrupção e ineficiência econômica.
Num ambiente corrupto, empresas que trabalham para governo corrupto –
via contratos ou concessões – sabem que se ganha uma concorrência não
por qualidade técnica, mas pelo valor da propina. Empresas sérias se
afastam desses ambientes, como é o caso de muitas companhias e
Organizações Sociais que desistiram de trabalhar no Rio e muitas que
simplesmente desistiram do que têm a receber, por trabalhos legítimos,
porque não querem entrar na fila da propina.
Trata-se do “capitalismo de amigos”, revelado pela Lava Jato e tão resistente a ponto de conseguir abafar a própria Lava Jato. Portanto, um prêmio para a Fiocruz que deu uma lição ao STF: as
vacinas vão todas para o programa nacional de imunização, não podendo
ser reservadas nem para os funcionários da Fiocruz. Até o fechamento desta coluna, ontem à tarde, apenas um ministro do
STF havia se manifestado, Marco Aurélio: “peço desculpas”. E os outros?
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
Coluna publicada em O Globo - Economia 24 de dezembro de 2020