Historicamente, muitos magistrados usaram a lei como instrumento de opressão e tirania
A
campanha contra a corrupção atinge décadas de existência, no mundo e no
Brasil. Fenômeno social, político, econômico, suas causas e seus
resultados têm muitos sentidos. Erro é o entender com análises que o
cindem entre o bem e mal, o aceitável e o proibido. Oportunismos vários
recortam a vida coletiva de maneira maniqueísta: o nosso lado nunca
sofre erros; já o canto oposto... responde por tudo o que dissolve os
laços éticos. Tais indignações sempre são seletivas. Pode nosso parceiro
cometer as piores vilanias, ele encontrará desculpas em nossas almas.
Mas as hostes inimigas, mesmo em caso de pecadilho, transformam-no no
agente de Lúcifer.
Se escutamos fanáticos que agem segundo
slogans, pouco podemos reclamar do seu primarismo. Seitas seguem líderes
de modo apaixonado. Basta que sejam ouvidas falas contrárias às do
agrupamento, logo os gestos se tornam agressivos. O pensamento exige
diálogo entre diferentes (a mesmice impede saberes novos), mas o
sectário nada capta sobre realidades complexas. Preocupa, no entanto,
encontrar pessoas que deveriam dedicar-se à reflexão, mas aceitam
esquemas binários. Elas racionalizam fatos, dão aos parceiros frases
para justificar táticas hediondas.
Baseado em tal constatação,
Jean-Paul Sartre distingue o filósofo do ideólogo. O primeiro busca o
verdadeiro, o segundo dispensa a busca factual e lógica. O próprio
Sartre agiu com as duas faces, a filosófica e a ideológica. A primeira,
ao investigar a liberdade, os atos intencionais da consciência. A
segunda, ao defender regimes como o da União Soviética. Mas ele se
ergueu contra a invasão da Hungria em 1956. O mesmo indivíduo pode
assumir certa atitude, depois outra. Imaginemos povos inteiros, cuja
oscilação entre o pacífico e o truculento, o moral e o criminoso, conduz
às guerras.
A campanha contra a corrupção exige cautelas. Na
História temos casos de indivíduos que, ao guerrear o que julgavam
corrupto, foram vencidos. O símbolo dos justiceiros encontra-se em
Savonarola, “profeta desarmado”. Quando vencia, massas o seguiam, ébrias
de certezas. Ai dos pecadores! Acabou na fogueira e a República seguiu
costumes de antanho. A frase maquiavélica sobre o monge não é exata:
suas armas estavam na mente dos que o idolatravam. Quando popular, o
dominicano não precisava mover exércitos. A massa crente, ruidosa como o
vendaval, servia-lhe como arma.
No Brasil, surgem inúmeros
profetas, sobretudo no Judiciário, líderes da campanha em prol da pureza
radical. Quase nenhum deles recorda a experiência do irado monge. Usam a
receptividade do tema em estratos da população para atacar corruptos,
reais ou supostos. Olvidam o fato notório: a fama aparece e some em
pouco tempo. Uma sociedade abriga os mais contraditórios interesses e
causas. Em determinado instante, certo tema ocupa as mentes e os
corações. Quando surge outra ameaça, o interesse público a teme e
amplia.
Todos os que estudaram a famosa Operação Mãos Limpas
conhecem o seu instante de glória, quando muitos políticos foram presos,
expulsos da vida oficial. Mas depois vieram as réplicas. Juízes e
promotores perderam apoio, a Grande Causa foi obliterada pelo ramerrão
político ou eleitoral. Partidos foram destroçados. Mas outros, tão
corrompidos quanto, surgiram para controlar o Legislativo e o Executivo.
E tutto rimane come sempre... Magistrados fundaram partidos que poucos
votos tiveram. Hoje eles andam pelo mundo para explicar o seu fracasso.
Poucos atores da Mani Pulite criticaram a si mesmos, pois, como é
“evidente”, a culpa da hecatombe corrupta deveria ser atribuída aos
outros, os ardilosos que agem nas sombras... Outra nota do fanatismo:
ele é orgulhoso, deseja para si a perfeição plena. Os defeitos, ora,
encontram-se nos terrenos alheios...
O Judiciário brasileiro
procura se defender das críticas a ele enviadas pelos diversos setores
políticos, sociais, ideológicos, econômicos. As reações contra
magistrados a eles soam como crimes de lesa-majestade... divina. Tal
atitude foi resumida pela ministra Cármen Lúcia ao inaugurar o atual ano
de trabalho. “Não há civilização nacional enquanto o direito não assume
a forma imperativa, traduzindo-se em lei. A lei é, pois, a divisória
entre a moral e a barbárie”.
O nobre Rui Barbosa que nos
desculpe, mas é árduo identificar plenamente “lei” e “juízes”. Da Ágora
que condenou Sócrates aos tribunais de exceção do século 20 (e do
21...), muitos e muitos juízes usaram a lei como instrumento de opressão
e tirania. É recomendável a leitura do livro tremendo de Eric Voegelin,
Hitler e os Alemães. No Brasil da era Vargas e do regime imposto em
1964, juízes em grande quantidade “aplicaram imperativamente as leis” de
modo inclemente e desumano. Tais normas ofendiam o Direito, a
liberdade, a dignidade dos governados. Cito um correto comentário ao
discurso da magistrada: ela não mencionou, mas o Poder Judiciário, “com
frequência crescente, descumpre as leis, criando-as à revelia do
Congresso, instituição moldada para legislar. (...) As decisões da
Justiça devem ser respeitadas. Mas é igualmente certo que, em primeiro
lugar, quem deve respeitar a lei é o juiz. O fundamento para o respeito
às decisões judiciais não é a autoridade do magistrado, como se sua voz
tivesse um valor especial por si só. A decisão da Justiça tem seu
fundamento na lei, votada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo”
(O Estado de S. Paulo, A responsabilidade do Judiciário, 2/2/2018, A3).
As
ordens do Supremo Tribunal Federal são atenuadas mesmo por instâncias
inferiores do Judiciário. O caso da Súmula Vinculante de número 11 é
claro. Enquanto tal situação permanecer, e o cidadão for humilhado pelo
poder sem peias de juízes, sempre que ouvirmos suas falas com ataques à
vida social brasileira, devemos proclamar: medice, cura te ipsum
(médico, cura a ti próprio)!
Roberto Romano - Professor da Unicamp