“O populismo pode ser calçado com o pé esquerdo ou o pé direito, porém, não ressurge num ambiente de industrialização e ampliação dos direitos sociais que lhe dariam sustentação”
É do filósofo Isaiah Berlin, citado pelo historiador Alberto Aggio num instigante artigo sobre o populismo na América Latina (Um lugar no mundo, Fundação Astrojildo Pereira/Fundazione Instituto Gramsci), a comparação do conceito de populismo com o sapato da Cinderela no conto de fadas popularizado pelo francês Charles Perrault, a partir de 1697. Segundo Berlin, existe um sapato — a palavra populismo — para o qual há um pé em algum lugar. “Existem diversos tipos de pés que podem calçá-lo, mas esses pés não nos devem enganar porque quase se ajustam à medida. Na busca, o príncipe sempre vagueia errante com o sapato; e, em algum lugar, estamos seguros, espera um pé denominado populismo puro”. Aggio recorre à citação para questionar o uso abusivo e vulgar do conceito explicativo nas análises sobre a América Latina.
Num cenário de crise do liberalismo das repúblicas oligárquicas e de emergência das camadas populares na América Latina, em meados do século passado, porém, qualquer que fosse, o populismo buscava a construção de uma sociedade industrial moderna, politicamente orientada pelo Estado, com incorporação das massas pela via do reconhecimento dos seus direitos sociais. No Brasil, resultou num Estado de bem-estar social limitado, a partir de um programa nacionalista e estatizante, com uma legislação trabalhista que garantia direitos e, ao mesmo tempo, tutelava os trabalhadores. Esse modelo se tornou tão robusto que foi batizado de Era Vargas, pois atravessou inúmeras crises econômicas e políticas, inclusive com mudanças de regime político (1945, 1964, 1985), ao longo de nove décadas; somente agora, no governo Bolsonaro, está sendo desmantelado.
Por aqui, os sociólogos Francisco Weffort e Octavio Ianni, no final da década de 1980, experimentaram o sapato de Cinderela. Influenciados pela teoria da dependência, associaram o populismo ao processo de industrialização substitutiva de importações e às particularidades do desenvolvimento do capitalismo na América Latina. As plataformas aglutinadoras e catalisadoras da chamada “coalizão populista” seriam o nacionalismo desenvolvimentista e a política social de massas que os governos deveriam colocar em prática.
O populismo é visto como fenômeno de massas urbano, expressão e consequência do declínio do poder das oligarquias, a partir do início da década de 1930. A crítica ao populismo está na gênese da formação do PT, cujo próprio nome já revela a intenção original de construir uma organização que representasse a classe trabalhadora para si e não a sua manipulação por um “Estado de compromisso”. Não é preciso muita tinta para explicar que o resultado prático, 40 anos depois, com a passagem do PT pelo poder, não foi bem esse: o partido foi capturado pelo transformismo e abduzido pelo patrimonialismo.
Efeito Orloff
Na América Latina, a revanche do populismo bolivarianista parte da ideia de que a relação entre governantes e governados deve dar lugar à democracia direta e participativa, no bojo da crise da democracia representativa e dos seus partidos tradicionais. Entretanto, a roda da história dá mais uma volta, e o subcontinente é convulsionado por um novo ciclo político, no qual o Estado liberal oligárquico outra vez entra em confronto com as massas, tendo por pano de fundo a recidiva do populismo (Chile, Argentina, Colômbia), ou o contrário, o “Estado de compromisso” (Venezuela, Bolívia, Nicarágua) é que entra em colapso, com o fracasso do “bolivarianismo”.
Voltando à analogia de Isaiah Berlin, todos os populismos são derivações e variações, “em algum lugar se esconde, furtivo, o populismo verdadeiro, perfeito”. Pode ser que seja aqui no Brasil. “O populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta direitos humanos, suprime liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas”, adverte Aggio, com a ressalva de que nos lugares onde a ordem constitucional é mais legitimada, como aqui no Brasil, a resistência é maior a esse tipo de movimento, que “nem deveria ser qualificado de populista”.
Insidioso, o populismo pode ser calçado com o pé esquerdo ou o pé direito, porém, por uma ironia da história, agora não ressurge num ambiente de industrialização e ampliação dos direitos sociais que lhe dariam legitimidade e sustentação política. Pelo contrário, ocorre num momento em que a integração da América Latina às cadeias mundiais de produção resulta em desindustrialização, redução de mercado interno e ampliação das desigualdades sociais e regionais, com desemprego em massa. Ou seja, por falta de uma estratégia robusta de desenvolvimento sustentável, não tem a menor chance de dar certo. No nosso caso, se o projeto ultraliberal do atual governo fracassar, ou Bolsonaro enveredar pelo caminho de um certo “populismo destro”, corremos risco de um efeito Orloff: o Brasil pode ser a Argentina amanhã.
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