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domingo, 24 de novembro de 2019

Sapato de Cinderela - Nas entrelinhas

O populismo pode ser calçado com o pé esquerdo ou o pé direito, porém, não ressurge num ambiente de industrialização e ampliação dos direitos sociais que lhe dariam sustentação”


É do filósofo Isaiah Berlin, citado pelo historiador Alberto Aggio num instigante artigo sobre o populismo na América Latina (Um lugar no mundo, Fundação Astrojildo Pereira/Fundazione Instituto Gramsci), a comparação do conceito de populismo com o sapato da Cinderela no conto de fadas popularizado pelo francês Charles Perrault, a partir de 1697. Segundo Berlin, existe um sapato — a palavra populismo — para o qual há um pé em algum lugar. “Existem diversos tipos de pés que podem calçá-lo, mas esses pés não nos devem enganar porque quase se ajustam à medida. Na busca, o príncipe sempre vagueia errante com o sapato; e, em algum lugar, estamos seguros, espera um pé denominado populismo puro”. Aggio recorre à citação para questionar o uso abusivo e vulgar do conceito explicativo nas análises sobre a América Latina.

Num cenário de crise do liberalismo das repúblicas oligárquicas e de emergência das camadas populares na América Latina, em meados do século passado, porém, qualquer que fosse, o populismo buscava a construção de uma sociedade industrial moderna, politicamente orientada pelo Estado, com incorporação das massas pela via do reconhecimento dos seus direitos sociais. No Brasil, resultou num Estado de bem-estar social limitado, a partir de um programa nacionalista e estatizante, com uma legislação trabalhista que garantia direitos e, ao mesmo tempo, tutelava os trabalhadores. Esse modelo se tornou tão robusto que foi batizado de Era Vargas, pois atravessou inúmeras crises econômicas e políticas, inclusive com mudanças de regime político (1945, 1964, 1985), ao longo de nove décadas; somente agora, no governo Bolsonaro, está sendo desmantelado.

Por aqui, os sociólogos Francisco Weffort e Octavio Ianni, no final da década de 1980, experimentaram o sapato de Cinderela. Influenciados pela teoria da dependência, associaram o populismo ao processo de industrialização substitutiva de importações e às particularidades do desenvolvimento do capitalismo na América Latina. As plataformas aglutinadoras e catalisadoras da chamada “coalizão populista” seriam o nacionalismo desenvolvimentista e a política social de massas que os governos deveriam colocar em prática.

O populismo é visto como fenômeno de massas urbano, expressão e consequência do declínio do poder das oligarquias, a partir do início da década de 1930. A crítica ao populismo está na gênese da formação do PT, cujo próprio nome já revela a intenção original de construir uma organização que representasse a classe trabalhadora para si e não a sua manipulação por um “Estado de compromisso”. Não é preciso muita tinta para explicar que o resultado prático, 40 anos depois, com a passagem do PT pelo poder, não foi bem esse: o partido foi capturado pelo transformismo e abduzido pelo patrimonialismo.

Efeito Orloff
Na América Latina, a revanche do populismo bolivarianista parte da ideia de que a relação entre governantes e governados deve dar lugar à democracia direta e participativa, no bojo da crise da democracia representativa e dos seus partidos tradicionais. Entretanto, a roda da história dá mais uma volta, e o subcontinente é convulsionado por um novo ciclo político, no qual o Estado liberal oligárquico outra vez entra em confronto com as massas, tendo por pano de fundo a recidiva do populismo (Chile, Argentina, Colômbia), ou o contrário, o “Estado de compromisso” (Venezuela, Bolívia, Nicarágua) é que entra em colapso, com o fracasso do “bolivarianismo”.


Voltando à analogia de Isaiah Berlin, todos os populismos são derivações e variações, “em algum lugar se esconde, furtivo, o populismo verdadeiro, perfeito”. Pode ser que seja aqui no Brasil. “O populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta direitos humanos, suprime liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas”, adverte Aggio, com a ressalva de que nos lugares onde a ordem constitucional é mais legitimada, como aqui no Brasil, a resistência é maior a esse tipo de movimento, que “nem deveria ser qualificado de populista”.

Insidioso, o populismo pode ser calçado com o pé esquerdo ou o pé direito, porém, por uma ironia da história, agora não ressurge num ambiente de industrialização e ampliação dos direitos sociais que lhe dariam legitimidade e sustentação política. Pelo contrário, ocorre num momento em que a integração da América Latina às cadeias mundiais de produção resulta em desindustrialização, redução de mercado interno e ampliação das desigualdades sociais e regionais, com desemprego em massa. Ou seja, por falta de uma estratégia robusta de desenvolvimento sustentável, não tem a menor chance de dar certo. No nosso caso, se o projeto ultraliberal do atual governo fracassar, ou Bolsonaro enveredar pelo caminho de um certo “populismo destro”, corremos risco de um efeito Orloff: o Brasil pode ser a Argentina amanhã.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo -Correio Braziliense

 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Renovação precária

A questão é saber como Bolsonaro conviverá com as corporações que não querem perder seus privilégios


Ao deixar claro o apoio ao deputado Fabinho Ramalho, do MDB, para a presidência da Câmara, chamando-o em público de “meu presidente”, e também transparecer que não gostaria de ver o reeleito Renan Calheiros na presidência do Senado, o presidente eleito Jair Bolsonaro mostra que pretende impor ao Congresso renovação de lideranças.  Não necessariamente melhores, como acontece com a representação do Congresso, renovado, pero no mucho, e com a sua própria eleição a presidente, que representou uma derrota do PT e da chamada “velha política”, mas se escora em remanescentes de esquemas anteriores para ditar seus caminhos.

Inclusive ele mesmo, que veio do chamado “baixo clero”, que agora quer espaços para atuar mais desenvoltamente. O deputado Fabinho, por exemplo, tem como principal predicado as festas que dá em seu apartamento, e as iguarias que serve aos companheiros: porcas à pururuca, com duplo sentido e tudo.  Para reforçar sua candidatura, defende o aumento dos vencimentos dos deputados. Imiscuindo-se em assuntos privativos de um outro poder, do qual fez parte por 27 anos, Bolsonaro corre o risco de receber de volta da Câmara bombas como as que aumentam os gastos para o próximo ano, seu primeiro à frente do Executivo.

Depois de quebrar a espinha dos partidos ao nomear ministros e secretários de primeiro escalão sem consultá-los, no que fez muito bem, agora Bolsonaro tem tido reuniões com seus representantes, pois precisará de votos para aprovar as reformas impopulares que podem vir a ser a mola propulsora para a retomada do crescimento econômico do pais.  Na campanha, ele chegou a admoestar seu vice, general Mourão, que, numa palestra, disse que encargos como décimo terceiro salário eram “jabuticabas”, que só existiam na legislação trabalhista brasileira.  “É uma ofensa ao trabalhador brasileiro”, disse o então candidato, contrariamente ao que afirmou ontem o presidente eleito, que concordou que as “jabuticabas” são prejudiciais a quem cria empregos. O que confirma a impressão de que, pelo menos em termos de política econômica liberal, se o deputado federal Bolsonaro era menos flexível que o candidato Bolsonaro, o presidente eleito é mais flexível do que o candidato Bolsonaro, e o presidente empossado será mais ainda.

A questão é saber como conviverá com as corporações que não querem perder seus privilégios, inclusive a sua turma, os militares, ou com os sindicatos, que defendem as corporações contra a reforma da Previdência e a flexibilização mais ampla da legislação trabalhista.  A extinção do Ministério do Trabalho foi medida na direção da modernização da legislação, que já sofrera uma reviravolta renovadora no governo Temer. Mas se o presidente eleito quiser mesmo estimular uma ligação direta com os cidadãos, prescindindo dos partidos e utilizando as redes sociais, como poderá pedir sacrifícios se não acabar com privilégios?

Precisará convencer seus eleitores de que a aproximação com a informalidade, como defende, não significa retrocesso, mas avanço na direção de mais empregos. Assim como a reforma da Previdência significará um futuro mais garantido para todos, em troca da perda de vantagens de alguns poucos. Ao procurar montar o governo através de bancadas temáticas, transversais aos partidos e que abrigam deputados e senadores de diversas tendências em defesa de interesses diversos, Bolsonaro livrou-se do toma lá dá cá para cair nos braços das corporações de funcionários públicos, dos militares, dos agricultores, que defenderão prioritariamente seus interesses, mesmo respeitáveis.  A visão de conjunto das necessidades do país só mesmo os partidos políticos supostamente teriam. Uma mudança de tamanha amplitude tem, em tese, o apoio de quase 58 milhões de votos (e não 54 milhões como escrevi recentemente), mas quando afetar temas delicados, mas necessários, esse número sofrerá uma redução, e a oposição se aproveitará dos que se sentirem abandonados ou traídos. O presidente francês Emmanuel Macron foi eleito para fazer as reformas, mas a realidade está colocando freios nas suas boas intenções.

Um apoio institucional será então necessário, seja dos partidos políticos, seja dos formadores de opinião. Uma ligação direta com o eleitor só serve para governos populistas que querem suplantar as instituições, base da democracia.

Merval Pereira - O Globo

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Desobediência Civil



Carga de ideologia que existe no tema leva magistrados a defenderem interpretações contra a lei

O ciclo de reformas em que o país está, forçado pela mais grave crise econômica de que se tem registro, deflagrada por irresponsabilidades fiscais e outras, inevitavelmente tem sido acompanhado — e será até seu esgotamento — por embates com grupos de interesses que se valem da velha ordem, que não mais se sustenta. Ou melhor, uma ordem que passou a ir contra todo o sistema.

As mudanças no arcabouço previdenciário — dos assalariados do setor privado e dos servidores públicos — são um exemplo claro: com o passar do tempo, normas desatualizadas em relação à demografia do país, entre outros fatores, começaram a ampliar o déficit do INSS, e passou a ser necessário fazer com que as pessoas se aposentem com idade mais elevada (a partir de 65 anos). As resistências são ferozes.

Mas há imperativos aritméticos que forçam esta e outras mudanças. O mesmo ocorre com os servidores, privilegiados em relação aos trabalhadores de empresas privadas. O déficit do seu sistema, no caso da União, chega a ser maior que o do INSS, mesmo que conceda benefícios a apenas um milhão de aposentados, contra 33 milhões na área privada. A grita contra mudar este estado de coisas é, óbvio, enorme.

A reforma trabalhista repete o enredo. Com uma característica: o combate que é feito na Previdência se alimenta de uma questão pecuniária, em que as pessoas desejam manter o padrão de vida depois da aposentadoria, e consideram isto um direito que lhe deve ser garantido pelo Estado; mas se trata de uma impossibilidade, mesmo em sociedades ricas, porque o dinheiro público é finito. Para isso, existem sistemas privados de seguridade. No caso da reforma trabalhista, o pano de fundo da resistência é ideológico, porque o combate às mudanças ocorre dentro o aparelho de Estado, na própria Justiça da área. Daí uma associação, a Anamatra (dos magistrados da Justiça do Trabalho), ter recomendado a juízes, procuradores e auditores que não sigam dispositivos da nova legislação, por considerar a reforma “inconstitucional”.

Usam-se argumentos supostamente técnicos na tentativa de se explicar por que uma entidade de magistrados prega o descumprimento da lei, em nome da própria lei. Um insustentável posicionamento.  É certo que diferentes tribunais podem ter interpretações diversas. Mas não em questões indiscutíveis, já assentadas de forma clara na nova legislação. No pano de fundo desta espécie de “desobediência civil” de togados e similares — por certo, inédita — está a grande carga de politização que existe no meio.

A causa é a própria dosagem de ideologia que acompanha a legislação trabalhista, desde a sua consolidação na CLT por Getúlio Vargas, o maior ícone do populismo pátrio. O primeiro “pai dos pobres” de relevo na política brasileira, Getúlio forjou o discurso de uma CLT inamovível, por ser suposta peça-chave na proteção do povo. Mas os tempos mudam e mesmo ela precisa ser atualizada. A carga de ideologização do tema leva ao ponto de magistrados quererem interpretar a reforma contra o espírito dela mesma.

Editorial - O Globo
 

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Reformas e popularidade

O presidente Michel Temer assumiu um país virtualmente falido, correndo para o abismo e a insolvência

A grande vantagem dos governos populistas, como os que presidiram o país nos últimos anos, consiste no exercício ideológico da irresponsabilidade. Os recursos públicos foram simplesmente vilipendiados, quando não tratados como cosa nostra, sendo o mensalão e o petrolão os seus melhores exemplos.

Contudo, enquanto a farra imperava, houve inegáveis ganhos de popularidade política. Em seu corte esquerdista, estes governos caracterizavam-se pela dita afirmação dos direitos, como se os deveres não fizessem parte da cidadania. Observávamos — e observamos — corporações e sindicatos assim cooptados tomarem para si uma parcela cada vez maior dos recursos públicos. Os gastos tornaram-se cada vez maiores, sem as correspondentes receitas. Chega um dia em que a conta deverá ser paga. E ela chegou!

Para ter-se uma ideia do descalabro reinante quando o presidente Michel Temer assumiu o poder, o país perdia mensalmente cem mil empregos. Hoje, recupera 30 mil por mês, e os índices tendem a melhorar. O PIB era negativo, e já se pode prever para o próximo ano um crescimento entre 2,5% e 3,5%. A inflação nunca foi tão pequena em décadas, situando-se agora abaixo do piso da meta. Evidentemente, nada disto pode ser feito sem medidas duras, que, como é normal, produziram baixos índices de popularidade presidencial.

Há os que perderam os privilégios, os que não conseguem se dar conta de que a atual situação é decorrência de uma verdadeira herança maldita e os que seguem reféns da cegueira ideológica produzida pelo lulopetismo. É muito mais fácil vender ilusões, alicerçadas em dispêndios estatais crescentes, do que governar responsavelmente. Aliás, um dos graves problemas das democracias contemporâneas consiste em que essas procuram ganhar popularidade com políticas socialmente distributivas, como se essas fossem inesgotáveis, e não se preocupam com as questões atinentes à produção de riquezas, sem a qual nenhum distributivismo é capaz de se sustentar.

O presidente Temer assumiu um país virtualmente falido, correndo para o abismo e a insolvência. É bem verdade que muitos viviam na ficção dos “direitos” e de um “desenvolvimento” que se tornara inexistente. A nova classe média já tinha perdido a sua condição e voltava para a sua situação anterior. Apartamentos e carros, tão celebrados pelo lulopetismo, foram devolvidos, com uma enorme quebra de esperança. A inflação passou a corroer os salários e o poder de compra das famílias. Quem experimentou o gosto do melhor sofre muito mais com a sua perda.

Teve o novo presidente a coragem de assumir suas responsabilidades, despreocupado com sua popularidade e eleições. Talvez o seu maior erro tenha sido não ter apresentado ao país, no momento adequado, a herança recebida. Poderia ter aceito uma mera postergação do status quo, que, certamente, lhe teria granjeado popularidade. Poderia ter assumido o discurso fácil de venda de imagens de bem-estar social desconectadas da realidade. Em vez disto, decidiu colocar o país nos trilhos, no caminho das reformas necessárias.

Na medida em que se assumiu como “presidente reformador”, trouxe para si a impopularidade. A opinião pública, amortecida pelos governos anteriores, seguia na ilusão de que nossos problemas seriam meramente passageiros, uma “marolinha” que logo passaria. Uma pequena turbulência, e não a expressão de questões estruturais. Ora, reformas não são aprovadas do nada, sobretudo se o seu escopo for muito abrangente, atingindo vários dos interesses enclaustrados no próprio aparelho estatal. Na falta de popularidade, resta ao governante, se responsável for, apoiar-se no Parlamento, salvo se outra opção residir em um governo autoritário, que meramente impõe o que deve ser feito. 

O novo presidente não escolheu nem o populismo esquerdista, nem a solução autoritária, mas enveredou por negociações exaustivas e muitas vezes fisiológicas com a Câmara dos Deputados e o Senado.  Note-se que o Poder Legislativo é fruto desta mesma irresponsabilidade dos últimos governos, devendo passar ele também por um choque de realidade. De nada adiante criticar estas negociações parlamentares se nada for posto em seu lugar e, sobretudo, se o preço a pagar for a omissão, a irresponsabilidade e a manutenção do status quo.

Muito foi feito em curto espaço de tempo. A agenda reformista é extensa. Dentre outras iniciativas, observe-se:
a) o teto do gasto público, que impôs um limite à gastança irresponsável imperante;
b) a reforma do ensino médio, que vinha sendo negligenciada;
c) a aprovação da terceirização, que abre uma nova época para a produção de riquezas, dando uma nova agilidade aos processos econômicos;
d) a aprovação da modernização da legislação trabalhista, que cria novas oportunidades de emprego e tira a economia brasileira de seu engessamento, em consonância com o que ocorre nos países desenvolvidos;
e) a introdução de critérios de eficiência e de profissionalismo na gestão de empresas estatais e bancos públicos.

Ainda nestas últimas semanas, tivemos um aprofundamento do processo de desestatização de empresas públicas, sob a liderança do ministro Moreira Franco. Foi um ato de coragem mexer com símbolos de um país que deve se modernizar, como a Eletrobras e o aeroporto de Congonhas. Lembre-se dos benefícios da privatização da Telebras e a explosão de novas tecnologias e eficiência, colocando celulares baratos nas mãos de qualquer cidadão. Também está o governo cortando a bolsa-empresário, procurando equalizar as taxas de juros do BNDES com as do mercado, acabando com privilégios. 

A consciência de todo este processo de reformas e de inovação deveria ser uma obrigação mesma dos parlamentares, em cujas mãos está a necessária reforma da Previdência, sem a qual o quadro de transformações do país ficará incompleto. Pense-se igualmente no projeto de simplificação tributária.
O momento não é o de aposta na popularidade irresponsável.

Por:  Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - O Globo


terça-feira, 11 de julho de 2017

Modernização trabalhista e autonomia

Autonomia dos indivíduos e de suas organizações, entre as quais os sindicatos, é central em todo Estado pautado pela liberdade

A discussão ora em pauta sobre a modernização da legislação trabalhista, a ser votada nesta semana no Senado, tem implicações morais que dizem respeito à própria autonomia dos cidadãos. Apresenta-se aqui uma verdadeira mudança de paradigma, centrada no trabalhador enquanto capaz de tomar suas próprias decisões, não necessitando da tutela do Estado. 

Historicamente, esta legislação remonta, de um lado, ao positivismo e, de outro, à legislação corporativa, de cunho fascista. Na perspectiva positivista, clara em Augusto Comte e em seus discípulos franceses e brasileiros, tratava-se de incorporar o “proletariado” à rede de proteção social, de tal modo que pudesse, por exemplo, ter garantias de salário e, principalmente, de educação.  Na perspectiva corporativa, tratava-se, por sua vez, da mesma ideia de incorporação, sempre e quando obedecesse à própria tutela do Estado a organizar estas relações em seu interesse político. O presidente Getulio Vargas, não esqueçamos, foi formado na tradição positivista gaúcha, que foi mais forte do que em outros estados da União. 

Naquele então, estávamos diante de uma situação de exclusão do “proletariado”, que clamava por uma proteção inexistente. O preço a pagar era sua subordinação às orientações dos governantes que guiavam a sua conduta. Muito diferente é a situação atual, com os trabalhadores usufruindo constitucionalmente de direitos e com ampla capacidade de mobilização através de seus sindicatos. O mundo mudou, e a legislação trabalhista não acompanhou esta mudança no país. O resultado de tal descompasso apresenta-se na extrema judicialização de qualquer conflito, com uma Justiça do Trabalho abarrotada de demandas e, ideologicamente, atrelada a um mundo que não mais existe. Aliás, diz-se de esquerda, o que não faz muito sentido, salvo na acepção de um positivismo ou fascismo de esquerda!

Tome-se um dos pontos centrais da atual proposta de modernização, o de que a convenção coletiva passaria a ter força de lei. Observe-se, inicialmente, que não há nenhuma subtração de direitos em questão, apesar das declarações vazias dos representantes deste passado corporativo e tutelar. Por exemplo, parcelar férias por decisão autônoma de empregadores e empregados não anula o direito de usufruir de férias, cuja duração não sofre nenhuma alteração. 

O mesmo vale para as jornadas de trabalho segundo as especificidades de cada setor. O que é válido para um trabalhador da indústria automobilista não vale para os setores de enfermagem e vigilância. Caberia aos trabalhadores de cada setor, junto com os seus empregadores, decidirem o que convém mais para eles.  Uma vez que o acordo coletivo tenha força de lei, ocorre uma verdadeira restituição de direitos do ponto de vista da sociedade e dos trabalhadores em particular. O direito que está sendo conquistado é o de liberdade de escolha, direito central em qualquer Estado livre. Se os trabalhadores são tutelados, através de uma Justiça Trabalhista onipotente que legisla através de súmulas, eles são considerados como submissos, não livres, incapazes de tomarem uma decisão por si mesmos. Não são tidos por cidadãos, mas por súditos. 

A autonomia dos indivíduos e de suas organizações, dentre as quais os sindicatos, é central em todo Estado pautado pelos princípios da liberdade. Deve a sociedade apropriar-se de sua liberdade de escolha, reduzindo a margem de arbítrio das intervenções legislativas impostas desde cima. Insista-se aqui que os trabalhadores e a sociedade em geral estão apropriando-se de direitos que lhe foram usurpados. Não há perda de direitos, porém conquista. 

A linguagem de perda é produto de uma forma de organização estatal e legislativa guiada pela tutela dos indivíduos. Neste sentido, a perda de direitos deve ser entendida enquanto perda de um “direito estatal”, que tomou o lugar da liberdade de escolha. Ou seja, estaríamos diante de uma oposição entre tutela e autonomia. A linguagem de perda serve apenas aos que percebem a sua esfera de arbítrio como sendo reduzida. Ademais, ela baseia-se igualmente em uma concepção ideológica segundo a qual se o capital ganha o trabalhador perde e o seu inverso. Seria um jogo do ganha-perde e não do ganha-ganha, que hoje preside as relações de sociedades capitalistas democráticas. Uma empresa só vai bem se os seus ganhos são compartilhados com todos. 

Temos hoje o caso de conflitos trabalhistas cujas decisões de juízes inviabilizam pequenas e médias empresas, jogando outros trabalhadores ao desemprego e reduzindo, desta maneira, o pagamento de tributos que possuem destinações sociais. Os exemplos seriam inúmeros. A atual legislação atiça conflitos em vez de regulá-los e, mesmo, evitá-los. O governo Temer tomou a ousada decisão de levar a cabo esta necessária modernização da legislação trabalhista, enfrentando preconceitos e interesses corporativos há muito arraigados. Note-se que ela foi implementada por seu ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que conduziu, preliminarmente, toda uma negociação com as centrais sindicais e as confederações patronais. Apostou e foi bem-sucedido no diálogo e na persuasão. 

Observe-se que os pontos atualmente mais conflitivos foram os que não constaram daquela negociação, a saber, o do trabalho intermitente e o da extinção da contribuição sindical. Neste sentido, as centrais sindicais e as confederações patronais têm razão no protesto, uma vez que se ativeram ao que tinha sido negociado e foram pegas de surpresa com a mudança.  O bom senso sinalizaria para negociações sobre estes pontos, que poderiam, por exemplo, contemplar uma extinção progressiva da contribuição sindical em três anos, atendendo às partes envolvidas, ou outra solução levando em conta as especificidades dos setores urbano e rural.[a contribuição sindical tem que ser extinga e de uma única vez, acabando com uma mamata que a tal contribuição propicia, sem prestação de contas de um dinheiro que é público, aos sindicatos e aos pelegos que os dirigem.
O Brasil espera que os boatos sobre o acordão em negociação entre os 'sindicatos' e o Governo, para manter a maldita contribuição sindical - seria editada uma MP adiando a extinção da famigerada contribuição,  não passe de boatos.] 

Valeria o novo espírito de diálogo, e não o da imposição.


Fonte: Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Temer dá o tom

Ele não é uma unanimidade nacional. Ao contrário. Chegou ao posto cercado por desconfianças e críticas, não só da oposição como do público em geral que temia o risco de viver sob a tutela de mais um aventureiro (como tantos que por ali passaram!), sendo, no caso, alguém que sequer tinha sido escolhido diretamente pelo voto popular. Michel Temer assumiu há poucos meses como 37º presidente da República, debaixo de ralos índices de popularidade, sofrendo a pecha de representar um partido ideologicamente fisiológico e estruturalmente esfacelado – que mais se aparenta com uma federação de caciques regionais do que com o modelo almejado por eleitores de uma agremiação coerente e coesa. 

Devagar, ao seu estilo, usando do traquejo político e da facilidade para a negociação – atributos que lhe são reconhecidamente peculiares – foi impondo uma nova agenda ao Planalto e, por consequência, ao País. Independente das preferências partidárias e das queixas de cada um contra seus métodos, o fato é que o presidente está colhendo robustos resultados e mostrando consistência na gestão. Como um jogador de pôquer que coloca sobre a mesa a mão imbatível de um “Royal Flush”, ele apresentou, nesses primeiros tempos, cartas fortes como a da volta do controle aos gastos públicos, através de um teto constitucional aprovado em Congresso, a queda dos juros, o crescimento da receita com a arrecadação (sem aumento de impostos) e o encaminhamento de reformas essenciais, tais como a da Previdência e a da legislação trabalhista, esta última flexibilizando relações entre patrões e empregados. Sem contar, de quebra, a rearrumação administrativa e de caixa de estatais como a Petrobras e a Eletrobras, que andavam à míngua. 

O Banco Central e o BNDES deixaram de ser usados, respectivamente, como mero emissor para tapar gastos do Tesouro e garantidor de créditos subsidiados. Estão em nova forma, focados em seus objetivos fins de política monetária, desenvolvimentista e fiscal. Decorre daí talvez a mais eloquente vitória da administração Temer, assinalada na semana passada, com efeitos positivos e consequências duradouras sobre a vida de todos os brasileiros: a queda da inflação a patamares mundialmente tidos como civilizados. Em janeiro a taxa ficou em comportados 0,38%, o menor nível para o mês em mais de 30 anos, três vezes menor que o de janeiro do ano passado. É um índice nunca antes experimentado desde o início da era da estabilização da moeda, em 94. 

O que isso representa? Certamente o desempenho não é fruto tão somente de um cenário recessivo que inibe o recrudescimento dos preços. Afinal, a recessão já é moléstia em vigor por aqui desde 2014, pelo menos. A acomodação inflacionária é decorrente, principalmente, de uma volta à normalidade das condições macroeconômicas. A impressão de que tudo melhora, e numa velocidade maior que a esperada, vem endossada por vários indicadores e avalizada por muitos daqueles que estão acostumados a interpretar os humores do mercado.

 Armínio Fraga (que já pilotou o BC) diz, por exemplo, que a sensação de trem desgovernado, a caminho do precipício, passou. O professor Afonso Celso Pastore, ex-ministro da Fazenda, entende que o voluntarismo predominante no campo fiscal e dos juros nos tempos de Dilma (e que fez tudo desandar) virou coisa do passado. Mesmo empresários concordam com o otimismo e avaliam que “a economia parou de doer”. De um jeito ou de outro, Michel Temer vai empreendendo seu ritmo de virada. 

Ele se mostra genuinamente comprometido com o objetivo – encarado como missão – de colocar o País no rumo, pacificando ânimos. Sem pretensões à reeleição, segundo diz. Fará, nesse caso, história. Por enquanto, no plano político, amealha outros importantes trunfos e vitórias expressivas. Fez valer a sua influência para colocar na direção da Câmara e do Senado aliados do governo. Aproximou ainda mais de seu núcleo de poder a estratégica esquadra tucana, concedendo-lhes espaço na Justiça, no campo dos direitos humanos e em cargos-chave do Planalto. Ao todo, o presidente passou a somar quase 400 votos no Parlamento. Uma maioria tão absoluta que ele pode vir a aprovar qualquer texto de emenda constitucional sem muito esforço. E para deixar completo o seu ciclo de influência, encaminhou um nome da cota pessoal, com as qualificações exigidas de “notório saber” e “reputação ilibada”, para ocupar a cadeira vaga no Supremo. Com habilidade política e na economia, Temer está desanuviando o horizonte de problemas.

Fonte: Editorial - Carlos José Marques,  diretor editorial da Editora Três


 

domingo, 15 de maio de 2016

Temer chama centrais para negociar reforma da Previdência

Presidente interino busca apoio para aprovar medidas polêmicas no Congresso

Preocupado com a repercussão das declarações dos ministros Henrique Meirelles (Fazenda) e Eliseu Padilha (Casa Civil) de que o governo irá adotar a idade mínima ou aumentar o tempo da contribuição previdenciária, o presidente interino Michel Temer convocou uma reunião amanhã às 15h com as centrais sindicais. Foram chamados os presidentes da Força Sindical, UGT, Nova Central e CSB. Temer também convidou a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e a CTB, ligadas ao PT e ao PCdoB, respectivamente. Ambas não deram resposta.

O presidente da Força, deputado Paulo Pereira da Silva (SDD-SP), um dos líderes do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara, disse que o governo Temer começou errado, sem consultar as centrais sindicais antes de propor pontos da reforma previdenciária. “Vamos dizer para ele que já há na legislação uma idade mínima, que são os 90/100 de soma da idade e tempo de contribuição. Achamos que a situação da Previdência não é tão ruim como o governo fala”, afirmou.

O deputado admitiu, no entanto, que se a proposta de adoção da idade mínima for para quem ainda não ingressou no mercado de trabalho, a ideia é "conversável".  Além do presidente, participarão da reunião os ministros Meirelles, Padilha e Ronaldo Nogueira (Trabalho). A ideia é iniciar as negociações também sobre mudanças na legislação trabalhista.

Dias depois da aprovação do impeachment na Câmara, quatro centrais entregaram a Temer um documento pedido, entre outros, que não sejam retirados direitos dos aposentados: "O Brasil que queremos é resultado da seguinte agenda: implantação urgente de uma política de desenvolvimento nacional; mudanças e redirecionamento da política econômica; retomada, ampliação e adoção de políticas de geração de empregos, renda e direitos sociais; correção da tabela do Imposto de Renda; criação de condições para o aumento da produção e da exportação; juros menores, voltados ao consumo e aos investimentos no comércio e na indústria; manutenção e ampliação dos programas voltados para a diminuição das desigualdades sociais; fortalecimento da política de valorização do salário mínimo como forma de distribuir renda; não à retirada de direitos na Reforma da Previdência", diz um trecho do documento.

Fonte: O Globo