Bastaria esse fator para
prolongar a polarização da campanha eleitoral para muito além do
fechamento das urnas, em um anunciado terceiro turno. Foi, aliás, o que
aconteceu na eleição passada, quando o terceiro turno começou na mesma
noite da divulgação do resultado – e se prolongou pelos quatro anos
seguintes. Tivesse sido Bolsonaro reeleito, seguramente essa situação
também se repetiria pelos próximos quatro anos.
Mas
não é só isso. Tendo sido Bolsonaro o perdedor, seu eleitorado se sente
no direito de achar que o processo eleitoral não foi justo nem isonômico
(por via das dúvidas, atenção, censores de plantão: aqui e no restante
deste artigo, não estou afirmando que algo aconteceu, estou dizendo que
está é a percepção generalizada entre os eleitores do presidente).[fazemos nossas as palavras destacadas em itálico negrito e entre parênteses do articulista ao tempo perguntamos: 'foi justo e isonômico um processo eleitoral em que a repartição pública encarregada de administrar as eleições, proibiu a um dos lados praticamente tudo e ao outro permitiu quase tudo??? Um exemplo: a campanha do presidente Bolsonaro não pode veicular vídeo no qual o candidato do outro lado agradecia a natureza pela covid-19; quando o descondenado percebeu que tinha falado besteira, conseguiu que o TSE proibisse a veiculação do vídeo na campanha eleitoral do presidente Bolsonaro.]
Desnecessário detalhar aqui as reiteradas ocasiões em que, na percepção desse eleitorado,
três atores que deveriam agir como fiadores da lisura e da neutralidade
da eleição agiram de forma partidária, como cabos eleitorais de um
candidato em detrimento do outro: a grande mídia, os institutos de
pesquisa e a própria Justiça.
No
eleitorado de Bolsonaro, foi generalizada a percepção de que o
“sistema” estava disposto a tudo para eleger o outro candidato. Por
exemplo, sob a alegação de defesa da democracia, a censura foi
reabilitada. Em dois episódios dignos da ditadura
militar, a Jovem Pan foi amordaçada, com vários jornalistas afastados, e
um documentário sobre o atentado da campanha de 2018 foi proibido sem
sequer ter sido assistido.
Enquanto isso, o consórcio
da grande mídia e até ministros do Supremo deixavam clara sua
preferência, e outro documentário, que afirmava que o atentado foi uma
farsa, continuou sendo livremente exibido em plataformas de streaming.
Por
sua vez, institutos de pesquisa que erraram miseravelmente no primeiro
turno continuaram a divulgar números mirabolantes – por exemplo, ainda
ontem apontavam empate técnico para governador em São Paulo – como se
nada estranho tivesse acontecido, e como se a sua credibilidade não
tivesse sido comprometida.
Além
disso, até as vésperas da votação, o programa eleitoral de um candidato
espalhava sem qualquer cerimônia que o outro candidato planejava acabar
com as férias e o décimo-terceiro salário, como se estivesse liberado
para divulgar fake news, enquanto o programa eleitoral do outro
não podia sequer mencionar alguns acontecimentos da nossa História recente, e jornalistas estavam proibidos de empregar determinadas
palavras.
Por fim, uma denúncia bem fundamentada de
sabotagem a mais de 140.000 inserções nas emissoras de rádio de um
candidato no segundo turno, que pode ter impactado fortemente a votação
no Nordeste, foi sumariamente rejeitada pelo mesmo órgão que ordenou uma
operação de busca e apreensão contra empresários com base em prints de conversas em um grupo privado no WhatsApp.
Por
tudo isso, é compreensível que a percepção de parte do eleitorado tenha
sido de que o jogo não foi justo como deveria. Ainda assim, vale
lembrar, Bolsonaro venceu com folga em três das cinco regiões do país -
Sudeste, Sul e Centro-Oeste - e venceu apertado na Região Norte. Só
perdeu no Nordeste. .
Um voto condicionalPor óbvio, o resultado das urnas deve ser respeitado,
mas é ilusão acreditar que o eleitorado de Bolsonaro vai esquecer tudo isso. As condições objetivas para o terceiro turno estão dadas. Além
de conviver com o inconformismo de 58 milhões de eleitores,
o novo
presidente enfrentará outros desafios nada triviais: primeiro, o de
lidar com um Congresso majoritariamente conservador e de direita, bem
como com
governadores de oposição eleitos com folga – dois deles no
primeiro turno – nos três maiores colégios eleitorais do país: São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
E, principalmente: se não quiser sofrer um rápido desgaste, o
novo governo terá de dar continuidade ao processo de recuperação da economia
observado nos últimos meses – o que pode ser particularmente difícil se
considerarmos os sinais emitidos na campanha e a inevitável pressão que virá
dos setores mais à esquerda do chamado campo progressista.
Estivéssemos vivendo uma recessão, com inflação e desemprego
subindo, o candidato do PT teria vencido no primeiro turno. Mas o fato é que hoje
os indicadores econômicos são positivos, existe a sensação de estabilidade e
previsibilidade, e não haverá uma “herança maldita” sobre a qual jogar a culpa
em um eventual cenário de deterioração econômica.
Não
precisa nem chegar perto da tragédia vivida pela Argentina: se a
inflação e o desemprego voltarem a crescer, se a trajetória de
recuperação do crescimento do PIB for interrompida, se a gasolina voltar
a subir – e torço, sinceramente, para que nada disso aconteça – a
situação pode se complicar muito rapidamente, porque a população está
cansada de crises.
É fácil visualizar milhões de
brasileiros frustrados ou insatisfeitos voltando a ocupar as ruas, aos
primeiros sinais de um revertério na economia. E chego aqui ao coração da matéria, ao cerne da questão: da
mesma maneira que aconteceu em 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita em uma
eleição apertada (mas muito menos apertada que a de hoje), o voto que decidiu a
eleição de 2022 foi condicional. Em 2014, apesar das evidências em contrário, o
eleitor volátil resolveu dar uma chance a Dilma, acreditando em suas promessas.
Ela já começou o segundo mandato sob pressão.
Muito
rapidamente, aquele mesmo eleitor entendeu que as promessas de campanha
não iriam se cumprir. Como Dilma foi reeleita com a condição de entregar
o que prometeu – e não entregou [infelizmente, o descondenado eleito não vai conseguir entregar] – ela perdeu rapidamente a base de
apoio que a sustentava, no Congresso e na sociedade.
Todo mundo sabe o que aconteceu em seguida: veio o longo e sofrido processo de impeachment, e Dilma foi mais uma vítima da “maldição do Vice”. Torço
sinceramente para que o Brasil não tenha que passar por isso novamente,
para que não haja nenhuma crise, para que a economia continue a
prosperar com bases sólidas e responsabilidade fiscal, para o bem da
população. Mas
nem tudo pelo que a gente torce acontece, e algumas condições objetivas
para um retrocesso econômico parecem dadas, até porque já foram
anunciadas.
O tempo não anda para trásEu e muitas pessoas que conheço
já passamos pela seguinte experiência: uma viagem que ficou na memória como tendo sido maravilhosa.
Anos depois, a gente resolve repetir a mesma viagem, na expectativa de reviver as mesmas sensações, e é só derrota. Porque uma viagem não é só o destino: é também o timing, o contexto, a companhia, o momento que estamos vivendo.
Tenho
a sensação de que, como os viajantes reincidentes, muitos eleitores
foram motivados, em alguma medida, pela nostalgia, pelo desejo de
recuperar as suas experiências subjetivas do período 2003-2010, quando,
em uma bonança alavancada pelo boom das commodities, a
economia brasileira efetivamente cresceu, e existiu a percepção de que
programas de distribuição de renda foram eficazes em promover a justiça
social de uma forma inédita no país (estou falando, repito, da percepções).
Como
nas viagens, nossa memória em relação à política é seletiva: tendemos a
ficar só com as lembranças boas e apagar do HD as crises e os
escândalos de corrupção que marcaram aquele período.A
campanha vencedora deste ano soube capitalizar essa nostalgia: apostou
na esperança de uma volta a um passado idealizado na memória (ou na
fantasia, no caso dos mais jovens), quando o amor triunfava e todos eram
felizes.
Mesmo que isso fosse uma verdade objetiva, e
não uma percepção subjetiva, o problema é que o tempo não anda para
trás. O contexto, as circunstâncias e a própria sociedade brasileira são
hoje completamente diferentes de 20 anos atrás. Basta
dizer que em 2003 sequer existia direita no país: a esquerda era
senhora absoluta das ruas e das redes sociais. Não havia um político
conservador com a mínima capacidade de mobilizar o povo. A narrativa era
hegemônica.
Hoje
não é mais assim. Haverá, certamente, um período de festa e catarse,
porque há muita energia represada. Mas, como sempre, em algum momento a
realidade prevalecerá, porque ninguém vive de narrativa.Os
boletos continuarão a chegar. Os problemas reais das pessoas não serão
resolvidos em um passe de mágica: podem até piorar, caso a economia se
descontrole. A lua-de-mel do eleitor casual com o novo governo pode
durar pouco tempo.
Tomara que não aconteça, mas um
risco real é que, como os viajantes citados acima, muitas dessas pessoas
rapidamente passem a se perguntar: "Que estranho, da primeira vez que
estive aqui foi tão legal... Por que agora não está dando certo, se
derrotamos o Fascismo? Por que meu filho tem diploma universitário, mas
não consegue emprego e passa o dia inteiro na internet? Por que não
estou comendo picanha? Cadê a minha picanha???"
E,
principalmente, no caso do eleitor minimamente preocupado com a
liberdade de expressão: “Por que não posso mais criticar o governo? Era
tão bom poder falar qualquer coisa sem sentir medo, era tão bom poder
chamar Bolsonaro de fascista e genocida sem que nada me acontecesse...”.