Caros
amigos,
Em
novembro de 1990 ocorreu uma Chacina que entrou para a história do Direito
Constitucional brasileiro, embora
muitos não a conheçam. Trata-se da
Chacina do Matupá (STF, IF 114, DJ 27.09.96). Na localidade de Matupá, região
de exploração de garimpo, situada no norte do Estado do Mato Grosso, três
criminosos fizeram uma família refém dentro de sua residência, mantendo-os
privados de liberdade durante muitas horas.
Exigiram,
para a sua libertação, quantias em dinheiro,
armas e munição, assim como a garantia de que não seriam perseguidos pela
Polícia em sua fuga. Enquanto a negociação se desenvolvia durante horas,
inclusive ao longo da madrugada, muitas pessoas passaram a se aglomerar ao
redor da casa, acompanhando as etapas da discussão entre a Polícia e os
criminosos. Na manhã do dia seguinte, vendo frustrada a negociação, a Polícia decidiu invadir a casa e conseguiu, enfim,
prender os criminosos, preservando a integridade física das vítimas.
Ocorre
que, a partir de então, o que ocorreu
foi uma história triste e estranha: a Polícia alegou que não dispunha de
viatura para o transporte dos criminosos para um local mais seguro, longe da
população enfurecida, que acompanhara a ação. Conseguiu, então, o carro do
Prefeito emprestado, que permaneceu como refém dos acusados durante certo tempo
para que fossem transportados até o aeroporto local. No
aeroporto, uma aeronave os levaria para outra cidade, evitando que fossem
linchados caso permanecessem na Delegacia da cidade, que não tinha
condições de resistir a uma invasão da população.
Contudo,
o carro do Prefeito possuía um dispositivo que cortava o fornecimento de
combustível. Segundo consta nos autos, o próprio
Prefeito teria acionado o mecanismo de interrupção do combustível, o que
fez com que o carro parasse, não podendo mais continuar o trajeto. Os policiais
conseguiram, então, fazer a troca dos presos para outro veículo que passava no
local, e continuaram rumo ao aeroporto. Populares
alcançaram o carro no aeroporto, cercaram a aeronave e queriam linchar os três
criminosos. Os presos foram, então, recolocados no carro, e, ao atingirem a
BR-163, tiveram interrompida a viagem por outro veículo que surgiu de repente,
impedindo o trajeto.
Diante da
fúria da população, os policiais
mencionaram que nada puderam fazer. Neste
momento, então, aconteceu uma tragédia: os três
criminosos foram retirados do carro e queimados vivos, com cenas
terríveis que percorreram diversos meios de comunicação do Brasil e do mundo. Diante
da péssima repercussão do caso, o
Procurador Geral da República da época resolveu tomar uma atitude: provocou
o Supremo Tribunal Federal por meio de uma representação
interventiva, também conhecida como ação direta
de inconstitucionalidade interventiva, usando como fundamento os artigos
34, inciso VII, e 36, inciso III, ambos da Constituição Federal.
O
argumento dele foi o de que o Estado do Mato Grosso não teve condições de
resguardar a dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 34, inciso VII,
alínea b. O caso foi o ápice de
um momento difícil do Estado, que convivia, à época, com paralisações de
serviços públicos, sendo que alguns servidores estavam sem remuneração há cerca
de três meses. Na época muitos defenderam, inclusive, a atuação da Polícia Federal no Estado do Mato Grosso, diante das
dificuldades vivenciadas pelo Estado. Os
olhares do País se voltaram, então, para o Supremo Tribunal Federal, que teve
de julgar um caso de tamanha magnitude quando a Constituição Federal de 1988 tinha, ainda, apenas
dois anos de idade.
A
ansiedade era tamanha, também, por conta
das promessas de garantia de direitos fundamentais trazidas pela Constituição, evidentemente desrespeitadas no
caso concreto. Teve início o julgamento.
Os Ministros louvaram a atitude do Procurador Geral da República, reputando-a
como medida corajosa na proteção dos direitos violados no caso concreto. Contudo,
prevaleceu o entendimento de que não se tratava de uma
hipótese de procedência de intervenção federal, medida excepcional, e
que suspende, temporariamente, a autonomia política do ente que a sofre,
como salientado pelo Ministro Relator, Néri da Silveira (IF 114, fls. 12-16).
Os
Ministros do Supremo construíram o entendimento de que apenas a violação
sistemática dos direitos da pessoa humana pelo Estado é que ensejaria a
intervenção federal, e não um caso como o examinado. Este seria um caso
isolado, e que já contava com medidas de apuração adotadas pelas autoridades
locais.
Cabe
citar aqui um pequeno trecho da ementa do caso:
"(...) Embora a extrema
gravidade dos fatos e o repúdio que sempre merecem atos de violência e
crueldade, não se trata, porém, de situação concreta que, por si só, possa
configurar causa bastante a decretar-se intervenção federal no Estado, tendo em
conta, também, as providências já adotadas pelas autoridades locais para a
apuração do ilícito (...)”
Sendo
assim, por maioria dos votos, o STF conheceu do pedido de Intervenção Federal;
e, no mérito, por unanimidade, indeferiu o pedido (IF 114, fl. 59). O assunto virou um
famoso exemplo de intervenção federal, narrado pelos livros de Direito Constitucional, embora, no fim das contas, o pedido de intervenção formulado
pelo Procurador Geral da República tenha sido julgado
improcedente. Vale dizer,
contudo, que a improcedência do pedido, no âmbito do Direito Constitucional,
não significa que não possa ocorrer a apuração em outras esferas, como no
Direito Penal.
E a Chacina do Matupá até hoje
marca, negativamente, a memória da cidade, tendo entrado para a história do Direito
Constitucional brasileiro. Esta é mais uma importante decisão no âmbito do
Direito Constitucional. Para conhecer mais, recomendo os demais artigos
disponíveis aqui no JusBrasil, assim como os vídeos do Curso
Brasil Jurídico, sendo alguns de acesso gratuito.
Um abraço e bons estudos!
Por: Gabriel Marques
- Professor - Professor de Direito
Constitucional da UFBA