Na última terça-feira, ganhou notoriedade na imprensa o acordo de colaboração premiada celebrado entre o Ministério Público do Rio de Janeiro e Élcio de Queiroz, acusado de participar do assassinato da vereadora Marielle Franco. Dentre os detalhes divulgados na mídia, destacou-se que, com o acordo, Élcio obteria o benefício de não ir a julgamento perante o Tribunal do Júri.
Na data de ontem (26/7), todavia, o MPRJ negou que tenha oferecido o referido benefício ao acusado. Em nota, afirmou que retirar do Tribunal do Júri a prerrogativa de julgar um acusado de homicídio ‘feriria a própria Constituição da República, retirando dos jurados a competência que ali lhes foi assegurada’[1].
Nesse contexto, aproveita-se a oportunidade para fomentar o seguinte debate: renunciar ao julgamento perante o Tribunal do Júri fere a Constituição Federal?
Diaulas Costa Ribeiro, Promotor de Justiça de carreira e atualmente Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em artigo intitulado “Júri: um direito ou uma imposição”[2], escrito nos idos de 1998, assentou que “se o júri no Brasil é um direito garantido, se é um direito individual por classificação constitucional, não pode ser impositivo; não pode ser obrigatório”.
De fato. Como bem ponderou Vladmir Aras, Procurador da República, no artigo intitulado “Renúncia ao julgamento pelo júri no processo penal brasileiro”[3], “a ideia de o réu, com assistência de seu defensor, poder renunciar ao júri não é absurda, primeiro porque o julgamento pelos pares é um direito individual listado no art. 5o da CF. Depois, porque o réu pode abdicar de outros direitos processuais”.
Se o tribunal do júri está listado no rol de direitos e garantias fundamentais do indivíduo, parece possível que se opte pelo não exercício, assim como o acusado pode optar por não exercer o direito de ficar em silêncio, de não produzir provas contra si, até mesmo por não exercer (plenamente) o direito ao contraditório e à ampla defesa, como se tem visto em inúmeros acordos de colaboração premiada.
Poder-se-ia dizer que o julgamento perante o tribunal do júri não é puro direito subjetivo do acusado, mas uma regra de competência e, mais do que isso, um instrumento por meio do qual o povo exerce diretamente o poder em nome da sociedade vitimada.
Sobre o primeiro ponto, destaca-se que a existência de exceções à competência do tribunal do júri evidencia que não se trata de regra absoluta. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, nos precedentes correlatos à edição da Súmula Vinculante n. 45[4], decidiu que a competência do tribunal do júri não é absoluta, sendo afastada nas hipóteses em que a Constituição Federal, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o Estado, prevê a competência de tribunais.
Sobre o segundo aspecto, o Tribunal do Júri não é garantia da sociedade vitimada, é garantia individual do acusado, ainda que a compreensão que se tem mais indique figurar como um dever fundamental do réu de ser julgado perante o júri e uma prerrogativa conferida à sociedade.
Dentro desse panorama, é possível que a primeira reflexão seja no sentido de que o acusado, mesmo tendo a opção da renúncia, certamente irá optar pelo julgamento perante o tribunal do júri, naturalmente em função da possibilidade de se explorar circunstâncias que, apesar de não estarem propriamente ligadas aos fatos, contribuem para que se trace uma linha em direção à empatia do jurado, que decide conforme a sua íntima convicção e não fundamenta ou publiciza a sua decisão.
Mas a verdade é que há casos em que a submissão ao julgamento perante o Tribunal do Júri representa, de antemão, a “quase certeza” da injustiça.
O primeiro exemplo que vem à mente é o caso da Boate Kiss, este que une duas das circunstâncias mais sugestivas para a discussão acerca da renúncia ao tribunal do júri: teses jurídicas de elevada complexidade e massiva exposição e exploração midiática.
No referido caso, tem-se, por exemplo, a discussão acerca de uma das distinções mais problemáticas no âmbito do direito penal material: a tênue linha que separa a culpa consciente do dolo eventual.
Há obras de elevada densidade jurídica que se dedicam exclusivamente a esse tema. No caso concreto, é unânime que a distinção entre os dois institutos é problemática. Imagine, então, conferir essa tarefa a sete cidadãos possivelmente – mas não obrigatoriamente – leigos.
E mais: sete jurados que terão a incumbência de digerir toda a explanação técnica em torno da matéria e, sem a necessidade de fundamentar, somente acompanhados de sua intima convicção, decidir no caso concreto se a hipótese é de dolo eventual ou culpa consciente. Isso tudo previamente alimentado pela ampla exposição midiática do caso.
Quanto ao último ponto, cabe dizer que nem mesmo o instituto do desaforamento[5], em tempos atuais, é capaz de resolver o problema do viés condenatório do corpo de jurados em determinados casos, naturalmente em razão do amplo acesso informacional e da absoluta facilidade com que a difusão massiva de dados alcança a todos. Há casos em que nem mesmo na mais distante comarca do estado é possível selecionar sete jurados com verdadeira isenção de ânimo.
Dentre desse panorama, aponta Vladmir Aras[6]:
Em casos de grande exposição midiática, capazes de minar a imparcialidade dos jurados, em função da massificação e teatralização da cobertura jornalística, o acusado deve ter o direito de renunciar ao julgamento pelo júri, a fim de assegurar o fair trial. Julgamento haverá, mas perante o juiz togado.
Sabe-se, é verdade, que o julgamento perante o juiz togado não constitui garantia da plena isenção de ânimo ou de ideias preconcebidas, tampouco de razoável neutralidade, mas a distinção crucial decorre da necessidade de fundamentação da decisão, o que possibilita o controle epistemológico das razões de decidir.
Ademais, o filtro processual estabelecido na decisão de pronúncia também tem se mostrado incapaz de poupar o corpo de jurados da apreciação de temas complexos como a distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente no caso concreto, sobretudo em razão do reduzido standard probatório que tem sido exigido para a submissão a julgamento perante o tribunal do júri.
Dessa forma, o acusado é submetido a julgamento popular a partir de uma decisão resultante de uma análise perfunctória do caso e a decisão imotivada dos jurados, albergada pela soberania dos veredictos, tende a prevalecer.
Acredita-se que há espaço para evoluir na interpretação do instituto do tribunal do júri, sobretudo no que diz respeito ao seu status de garantia fundamental e à possibilidade de não a exercer, a exemplo do instituto do waiver to trial by jury[7], presente no direito norte-americano, o qual poderá ser mais bem abordado em outra oportunidade.
De toda forma, a realidade é que a legislação brasileira nada dispõe acerca dessa possibilidade e que o acusado de crime doloso contra a vida, na atual conjuntura, não dispõe da alternativa de ser julgado por um juiz togado, de modo que o júri, ainda que listado no rol de direitos e garantias fundamentais, é obrigatório, mais se assemelhando a um dever fundamental do acusado, ou um direito-dever.
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