Chega de política.
Vou falar de sexo. Antes, havia a “sexpol”,
bandeira da política sexual dos anos 1960. Hoje, temos no máximo a “polsex”, ou seja, como as ideologias dançaram, só a sexualidade explica muitos rumos do
mundo e, claro, do Brasil, nosso grande motel das ilusões perdidas. Na
verdade, falarei só sobre uma parte muito importante da sexualidade: a bunda.
Há um tempo, escreveram na internet um artigo com meu nome, onde meu “falso eu” dizia que mulher não
precisa ter bunda dura e que as celulites eram bem-vindas. Na rua, veio uma
senhora toda contente e me declarou: “Eu
tenho bunda mole!” e saiu sorridente pelo artigo que eu “não” escrevi. Por isso, escrevo hoje
sobre a “bunda”, a famosa “preferência nacional”, um dos poucos monumentos
culturais que ainda nos restam. Por isso, e para esquecer nossa pornopolítica ,
escrevo, como um apócrifo de mim mesmo. Vamos
a isso. Visto de frente, o Brasil anda
para trás, parece um ex-Brasil. Por isso, vou olhar pela porta dos fundos: a bunda. A palavra já soa imprópria, obscena, já
traz um adjetivo acoplado. Por isso, desculpem-me os leitores, mas a palavra “bunda” é a única de que dispomos. Temos
eufemismos com “nádegas”, doces
apelidos como bumbum, mas o termo que usamos na vida diária é bunda mesmo, com
a ressonância africana dos “bundos”,
de onde vieram as vênus negras que nos miscigenaram.
A bunda não começou
no descobrimento do Brasil; as índias, apesar de “oferecidas”, não as tinham avolumadas, mas escorridas “em pera” , barrigudinhas e frágeis. A bunda começou nas
senzalas com senhores inflamados pelas negras, longe do tédio das sinhás. Há uma espantosa separação entre a bunda e a dona da bunda. A bunda fica mais importante
do que sua dona. Conheci uma moça que ficou meio paranoica por causa do
lindo rabinho que portava. Quando conversávamos, não era a ela que servíamos,
mas à “outra”. Ela vivia com ciúmes
de si mesma, e sua bundinha parecia dizer: “prestem
atenção nela; ela também é gente...”.
Reparem que as mulheres de bunda bonita, mesmo quando estão de frente,
estão de costas para nossos olhos. As mulheres de frente são mais inquietantes,
porque são “sujeitos” com rosto e
alma. Já as mulheres de costas aparentam um caráter mais passivo, mais “objetal”, diriam os filósofos. O
desejo pelas costas é a defesa contra os perigos da vulva. A bunda é estéril;
não inquieta como a vagina e seu mistério profundo. A bunda não procria — muito
pelo contrário. Eu já vi belas bundinhas no passado, nas areias de Ipanema, e
elas tinham uma florescência espontânea, inocente.
Naquele tempo, não havia muito
estímulo à punhetinha; raras eram as revistas pornográficas. Hoje, tanta
oferta sexual angustia-nos, mostra que nosso desejo é programado por indústrias
masturbatórias, provocando tesão para vender satisfação. Nunca vimos tanta publicidade movida a sexo.
A propaganda nos promete uma suruba
transcendental. Em
nenhum lugar do mundo vemos esse apelo sexual nas ruas, nas roupas das meninas — nosso feminismo resultou nisso. Quase todos os outdoors são de mulher
nua — outro dia quase bati o carro por causa de um cartaz com uma lourinha
nua da “Playboy”.
Hoje sexo é uma
imagem farta e colorida. Na época, punheta era literatura; para nos
excitar tínhamos de imaginar complicadas tramas de suspense com estrutura de
filme policial e o que acendia o desejo eram justamente os obstáculos a vencer
até a satisfação final. Babávamos sim diante das vedetes do teatro
rebolado, de Angelita Martinez, de Carmen Verônica, Luz
del Fuego, mas elas eram pessoas
verídicas, inteiras, e sua nudez tinha algo de transgressivo, de liberdade e
luta. Hoje as mulheres travam uma competição frenética de bundas e seios e
eu me pergunto: O que querem elas provar? Querem
nos levar para o fundo do mar como sereias, querem
destruir os lares, querem mostrar que o sexo sem limites resolverá os problemas do Brasil?
E agora, nesses tempos sinistros,
surgiu a bunda industrial. Ela fatura milhões para
as revistas de sacanagem. Elas programam nosso desejo e
limitam a imaginação criadora dos praticantes do vicio solitário, como chamavam os
padres no confessionário.
A bunda virou um
instrumento de ascensão social. Mesmo nossas meninas mais
românticas, sonhando com casamento e filhos, são obrigadas a rebolados cada vez
mais desbragadas. Milhões de menininhas pelos grotões do país se olham no
espelho e pensam: “Vou subir na vida”.
A bunda é um capital. A pessoa não
tem mais um corpo; o corpo é que tem uma pessoa, frágil, tênue, morando dentro
dele. O corpo e a pessoa são duas coisas diferentes; a menina mostra sua bunda como se fosse uma irmã siamesa.
Agora, com o surgimento da bunda digital na internet, a bunda perdeu
aquela aura de objeto único, “erguida no
altar de nosso desejo” (arggh!). Viraram bundas em streaming, olhadas com
tédio por nossos garotos, como um videogame superado. Depois da bunda, o que virá, já que a indústria cultural pede sempre
mais? Ânus
luminosos, entranhas profundas, o avesso do corpo?
No século XXI, nasce a bunda distópica, a “pós-bunda”, pela fragmentação do desejo. Desejamos as partes, mas
tememos o conjunto. O chamado “objeto
total” de Melanie Klein (aquela
mulher sem bunda e com seios enormes) foi substituído pelo objeto perverso,
parcial, deliciosamente irresponsável, “da
ordem do demônio”, ao contrário dos seios, “objetos de Deus”.
Hoje, com a sonda cósmica
pousando em cometa, com robôs capinando em Marte, em meio à crise mundial, nós olhamos a bunda: a porta dos fundos, a
entrada de serviço, em que talvez fiquemos para sempre. A bunda é nosso
destino histórico.
Por: Arnaldo
Jabor – O Globo
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