Tiradentes foi o primeiro grande bode expiatório da História do
Brasil. Era, digamos, o menos valido dos inconfidentes das Minas Gerais.
Pagou com a vida pela loucura de, não sendo abastado, ter comprado a
briga da elite das ricas regiões mineiras, revoltada com a “derrama”,
obrigação de dar um quinto do ouro garimpado à Coroa d’além-mar.
Enforcado, esquartejado, com as partes do corpo despedaçado espetadas em
postes, a cabeça em Vila Rica, hoje Ouro Preto, foi esquecido no
Império e celebrado na República como Protomártir da Independência. Hoje
o Estado republicano leva em impostos, no mínimo, 50% mais do que a
“derrama” colonial [quase 150%] e o martírio dele é lembrado neste tempo nefasto em
que, como se diz vulgarmente, “não está fácil pra ninguém” – seja para a
nobreza, seja para a plebe.
Os fidalgos contemporâneos são a elevada hierarquia do governo
federal e a elite partidária e sindical, que mandam na República com que
Joaquim José da Silva Xavier sonhou. A situação de dona Dilma é tão
precária que, num rasgo de altruísmo alienado, o senador Aloysio Nunes
Ferreira (PSDB-SP), candidato a vice da oposição ao poder petista de
mais de 12 anos, condescendeu em deixá-la “sangrar”, como se, neste
processo vil, nossa hemorragia não tivesse de desatar antes. “Inocente”,
diria compadre Washington.
“Nem tanto”, retrucaria o bêbado cético da
piada que, à porta da Igreja no ofício fúnebre da Sexta-Feira Santa,
resmungou ao ouvir o relato da paixão do Cristo: “Alguma ele fez”. O desavisado tucano pode até ter razão pelo menos num detalhe: a
situação também não está fácil para a “governanta”, que cada vez governa
menos, embora isso não queira dizer que não governe mais. Governa, sim!
E sua situação é tão aflitiva que não pode ser definida como de “pato
manco”, como se diz na América do Norte dos senhores que mantêm o
título, mas perdem o poder de fato. Talvez seja o caso de compará-la com
o corvo de asa quebrada à janela, da bela e triste canção de amor de
Bob Dylan.
A semana que findou antes das honras de praxe ao alferes herói cheirou
a incenso de exéquias para os petistas. Ela começou com a entrevista do
ex-diretor da empresa holandesa SBM Jonathan David Taylor à Folha de
S.Paulo, informando que delatou propinoduto entre sua firma e a
Petrobrás em agosto e a Controladoria-Geral da União (CGU) deixou para
investigar depois da reeleição de outubro. “Repilo veementemente”,
clamou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, repetindo o mantra
que agora lembra as juras de inocência de João Vaccari Neto, preso nessa
semana fatídica, ecoadas pelo presidente do Partido dos Trabalhadores
(PT), Rui Falcão. É como se dissessem: “Fecha-te, Vila Sésamo!”
Sim, há um quê de programa infantil de televisão em nossa chanchada
trágica. Por exemplo: enquanto a presidente mentia para se reeleger na
campanha oferecendo Shangri-lá ao eleitorado, seu Mágico de Oz, Guido
Mantega, lidava com a contabilidade pública, tratada com rigor nas
democracias com vergonha, como se fosse um conto sem fadas só de bruxas.
Os truques de mágico de circo “tampa de penico” adotaram o nome de um
drible desmoralizante no futebol, as “pedaladas” que o craque Robinho,
do Santos, deu no desajeitado zagueirão Rogério, do Corinthians, em
final de campeonato. O desconcerto contábil deu a segunda grande dor de
cabeça da véspera da data consagrada ao herói martirizado: o Tribunal de
Contas da União (TCU), incorporando de forma inédita a lógica dos
fatos, definiu-o, unanimemente, como “crime”. E não podia ser diferente,
pois é crime. E grave!
Só resta conferir se o TCU, além de ouvir o óbvio de Nelson Rodrigues
ulular, confirmará seus técnicos. E se o Congresso, a que ele serve,
terá súbito e improvável pudor de refutar algo tão simples e óbvio,
negando aval às contas do último ano do primeiro mandato de Dilma,
incriminando-a. Se a lógica patente substituir a obscura tradição, os rebelados
contra o mandarinato petista que vão às ruas terão razão para confiar
que a “gerenta” não chegará ao fim de sua malfadada gestão, pois haverá
razões legais, além do mero fato de ela ter-se revelado “incompetenta”.
Mas esta é, por enquanto, apenas uma hipótese remota. Impeachment de
presidente só pode resultar de um processo de responsabilidade efetiva e
comprovada de crime contra os bens e o interesse públicos, com aval,
primeiro, da Câmara e, depois, do Senado. Até Marina Silva pulou da rede
para lembrar que não basta impedir, é preciso assumir.
A monjinha trotskista contribuiu para o debate político consequente
de forma mais racional do que os tucanos que ela apoiou, timidamente, no
segundo turno da última eleição. Estes realizam a proeza de ser, a um
tempo, omissos e “oportunistas”, como definiu o historiador José Murilo
de Carvalho em entrevista ao Estado de domingo 12. Do alto de 51 milhões
de votos, Aécio Neves acenou para os manifestantes do apartamento em
Ipanema em 15 de março. E em 12 de abril convocou seguidores para um
protesto ao qual não foi.
Essa omissão com pretensão a liderar, com dados à mão e ideia nenhuma
na cabeça, só não superou em desfaçatez o oportunismo de aderir ao
impeachment após pesquisa do Datafolha constatar o apoio de 63% da
população à medida. Não estando autorizado por Carvalho a interpretar o
que disse com brilho, este escriba desconfia que os oportunistas não se
limitam a apreciar o sangramento de Dilma sem lhe ter dado, ao contrário
de Brutus em Júlio César, nenhuma punhalada. O problema é que, como
registrou neste espaço o tucano Roberto Macedo, economista de escol, o
PSDB ainda não apresentou ao eleitorado sequer sua posição sobre os
ajustes propostos por Levy. O desgoverno Dilma não sabe o que fazer e a oposição não conta o que
propõe para quando ele acabar: antes de apoiar o impeachment, devia
dizer o que fará no dia seguinte.
Fonte: José Nêumanne - O Estado de São Paulo
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