Ele sabe que nasceu num país que poderia ter dado certo se os políticos não fossem tão primários
Vitor Hugo ainda não tem uma semana de vida, nasceu a 40 quilômetros do centro da capital federal, Brasília, e já conhece na pele o significado da palavra “precária”. Cerca de uma hora depois do parto, no Hospital Regional do Gama, foi jogado ao chão por uma enfermeira, enrolado no lençol, no meio da roupa suja.
Não há berços suficientes para recém-nascidos no hospital. Em macas ou leitos na enfermaria improvisada, as mães colocam o bebê entre as pernas para evitar quedas. A mãe de Vitor Hugo tinha ido ao banheiro da ala de pós-maternidade, que fica no fim do corredor, longe do quarto. E deixara o filho enrolado, como enrolamos nossos nenéns, para que não sintam frio e fiquem protegidos.
O bebê caiu da altura de 1 metro, a mãe diz que o encontrou gritando entre os lençóis e ficou desesperada. Vitor Hugo sofreu uma fratura pequena no crânio, teve uma hemorragia, foi transferido para dois hospitais em dois dias, fez tomografia, ficou numa incubadora com soro, já mamou e seu estado é estável. Seu pai, eletricista, Wanderson de Santa Rita, estava indignado com o descuido da enfermeira.
A enfermeira não é uma iniciante. Tem 18 anos de profissão. O diretor do Hospital do Gama, José Roberto de Deus Macedo, confirmou que Vitor Hugo caiu no chão. Mas deu uma versão diferente da “roupa suja”. Disse que a enfermeira foi socorrer outra mãe e, sem perceber o recém-nascido, puxou o lençol de Vitor Hugo para cobrir uma cadeira suja de sangue, para a mulher poder sentar. Segundo colegas, a enfermeira estava com pressa. Havia 16 partos previstos no dia e apenas cinco vagas. Foi linchada nas redes sociais. Apresentou atestado psiquiátrico de “abalo emocional” por conta do acidente.
Há regras para tudo no Brasil. Só não são respeitadas. Uma resolução da Anvisa diz que toda maternidade precisa ter, no quarto, berço, banheiro e no máximo dois leitos. Leitos, não macas. O Ministério da Saúde informa que “devem ser seguidas as diretrizes para o parto humanizado, que prevê a privacidade da gestante e da família”. Difícil falar em “parto humanizado” nas condições gerais dos hospitais públicos no Brasil, resguardadas as exceções. A crise atinge estrutura, instalações e pessoal. No Hospital do Gama, não há camisolas para as mulheres que dão à luz. Elas usam lençóis descartáveis recortados e amarrados e, mesmo com pontos, precisam às vezes ser transferidas às pressas para outros hospitais, de ambulância, com o bebê, para dar lugar a outras grávidas.
A penúria não se restringe, claro, ao Hospital do Gama. No Instituto de Infectologia São Sebastião, no centro do Rio de Janeiro, que abriga casos suspeitos de febre amarela, há somente 12 leitos. Falta tudo, até respirador para paciente em estado grave. Falta cateter, falta gente, falta cadeira. O Instituto está hospedado de favor num andar de um prédio anexo ao Hospital dos Servidores.
Muitos anos antes de buscar um trabalho com ou sem carteira assinada, Vitor Hugo já sabe que nasceu num país que poderia ter dado certo se os políticos não fossem tão primários e precários – eficientes apenas para fazer propaganda eleitoral, encher os próprios bolsos e de suas famílias e perenizar suas mordomias. É uma afronta ouvir falar diariamente em roubos de bilhões, em rombos de bilhões. De dólares ou reais. O pai de Vitor Hugo não deve ter emprego com carteira assinada e não tem tempo para debater a terceirização e a CLT. Espero que ao menos tenha trabalho, porque é enlouquecedora a via crucis pelo seguro-desemprego. Não se consegue receber no Brasil aquilo a que se tem direito, pela Constituição.
Não há assistência digna para os que não têm voz. Nem educação, nem saúde, nem saneamento, nem moradia, nem transporte, nem mesmo paz, porque os pobres vêm sendo assaltados por motoqueiros em pontos de ônibus ou por quadrilhas em trens e coletivos lotados sem climatização. Marmitas, salários e celulares velhos são roubados sob a mira de armas. Conjuntos do Minha Casa Minha Vida estão vazios por burocracia, rachados por material de má qualidade, ou invadidos por bandidos e por famílias sem teto.
Poderia escolher outros temas nesta semana. A terceirização irrestrita aprovada na Câmara e o debate furibundo nas redes sociais sobre precarização do trabalho. O depoimento avassalador de Marcelo Odebrecht contra Dilma Rousseff, a Honesta. O espetáculo deprimente do “provocador-geral da República”, o ministro do Supremo Gilmar Mendes, cujo papel principal parece ser o de tentar melar a Lava Jato ao chamar vazamento de “crime”.
Achei mais honesto falar hoje de Vitor Hugo. Que sobreviva e seja feliz.
Fonte: Ruth de Aquino - Época
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