O governo é o maior contratante de obras e serviços, controla boa parte do crédito e é dono de empresas em setores cruciais
Não foi apenas o capitalismo de amigos que assolou o Brasil. Foi
pior: uma mistura de dois desvios do capitalismo, o de amigos com o
estatal.
A relação entre setores privados e governo existe em qualquer país
capitalista, mesmo naqueles de menor presença do Estado na economia. As
empresas sempre têm o que conversar com a administração pública, seja
com o executivo, seja com o legislativo. Leis, regulamentos e
burocracias afetam a atividade econômica, de modo que é normal o
interesse das companhias privadas em participar de algum modo das
decisões políticas.
A diferença é que essa relação pode ser legal e regulada – o caso
do lobby nos Estados Unidos, por exemplo – ou, digamos, informal. Nas
duas situações pode haver promiscuidade, mas é claro que a maior
possibilidade de desvios ocorre no modo informal.
No mundo todo, hoje, está em curso um processo de normatizar as
relações entre agentes públicos e privados. Em muitos lugares, chega-se a
detalhes: os encontros devem ser públicos, com agenda oficial, o
burocrata ou legislador não pode ter almoço grátis, nem presentes, e por
aí vai.
Mas tudo isso é relativamente recente. Não faz muito tempo que
multinacionais americanas e, sobretudo, europeias podiam abater como
despesa as comissões pagas a agentes de terceiros governos, sempre de
países emergentes. Isso começou a acabar quando o governo americano se lançou num
forte combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas. O método principal
foi seguir o caminho do dinheiro que financiava o crime. Nessa rota, os
policiais, promotores e juízes chegaram aos paraísos fiscais e lá
encontraram também pessoas e empresas normais, legais, mas que escondiam
dinheiro do Imposto de Renda, por exemplo, ou para subornar governos,
partidos políticos e seus agentes.
O primeiro grande embate internacional das autoridades americanas
foi com os bancos suíços. Estes se recusavam a abrir as contas de
cidadãos americanos acusados de sonegar impostos transferindo dinheiro
não declarado para a Europa. Demorou, mas os bancos, punidos com multas
no mercado de ações de Wall Street, acabaram entregando as contas. Seguiu-se uma nova legislação na Suíça, na prática acabando com o
sigilo bancário, assim acompanhando o que aconteceu em quase todo o
mundo democrático. Isso ajudou, e muito, as operações da Lava Jato. (Em uma das delações da Odebrecht, um executivo explicou que a
empresa fazia as “operações estruturadas” na Suíça, mas não nos EUA,
onde a coisa era mais difícil. Pois a empresa acabou apanhada nos dois
países, embora quase tenha conseguido tirar o dinheiro da Suíça).
Também entram em vigor os acordos internacionais que ampliam as
relações e troca de informações entre polícias, órgãos da receita e
bancos centrais. Leis de repatriação, como essas que tivemos no Brasil,
foram editadas em diversos países. Como aqui, lá também os bancos e
advogados recomendaram expressamente que seus clientes declarassem o
dinheiro escondido. Muitos bancos americanos e europeus simplesmente fecharam contas de
brasileiros e mandaram um cheque para os clientes que se recusaram a
declarar. Como sabiam disso? Exigiam cópias do IR no qual constasse os
valores depositados no exterior.
Tudo isso para dizer que o combate à corrupção, ao dinheiro
escondido, seja para qualquer fim, é universal e está em curso em toda
parte. Ou seja, a Lava Jato é um ativo brasileiro.
Vejam esta notícia de ontem: o presidente do conselho de ministros
da Espanha, Mariano Rajoy, líder do Partido Popular, foi convocado como
testemunha, para comparecer pessoalmente ao tribunal, obrigado a contar a
verdade, com contraditório e publicidade. O processo: corrupção em
obras públicas, seguida de financiamento ilegal de seu partido, que lá
eles chamam de “caixa b” – sim, o nosso conhecido caixa dois.
No Brasil, essas regras sobre o comportamento dos agentes públicos e
suas relações com as empresas privadas são recentes e nem sempre
respeitadas. Mas depois da Lava Jato, hoje são as empresas privadas aqui
instaladas que mais se preocupam com a legalidade e a transparência de
suas relações com o governo. Têm medo da Lava Jato e da justiça internacional. A Odebrecht está
pagando multas nos EUA. Em outras palavras: se antes era lucrativo ser
amigo do governo e dos partidos principais, agora ficou perigoso.
Mas o caso brasileiro é mais grave por causa do tamanho do
capitalismo de estado. O governo não apenas é o maior contratante de
obras e serviços, como controla boa parte do crédito, através de grandes
bancos comerciais e de desenvolvimento, e é dono de empresas dominantes
em setores cruciais, como a Petrobrás e a Eletrobrás. Tem muito espaço
para os amigos.
Reduzir esse tamanho do Estado é também uma forma de combater a corrupção.
Fonte: Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
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