A intolerância burra e preconceituosa viraliza no Brasil. Opinião só é crime em ditaduras
Os ataques verbais de petistas uniformizados à
jornalista Míriam Leitão não são um episódio isolado que se pode varrer
para debaixo do carpete do avião ou para o porão da consciência
nacional. Os xingamentos e deboches dirigidos a Míriam no voo da
Avianca, de Brasília ao Rio de Janeiro, são mais um sintoma da
enfermidade que viraliza no Brasil, a intolerância burra e
preconceituosa. Virtual e real.
Os militantes voltavam ao Rio após um congresso do PT. Agiram como arruaceiros covardes. Foi uma bravata encorajada pelo grupo. Estavam protegidos pela superioridade numérica e pela leniência da companhia aérea e do piloto, que nem pediu silêncio pelo alto-falante. Não me venham falar de esquerda ou direita. Foi falta de educação e de civilidade. Pegou mal para o PT, que pediu desculpas em nota.
Míriam voltava de uma entrevista em Brasília para a GloboNews em que pressionou duramente o ministro da Justiça, Torquato Jardim, a responder sobre o encontro clandestino entre o presidente Temer e o dono da JBS, Joesley Batista. Ela foi coagida a escutar, da sala de embarque até a aterrissagem, coisas assim: “Terrorista.” “Tem golpista a bordo.” “Essa aí é agente da CIA.” “Shh, shh, é a Míriam Leitão.” Gargalhadas. Alguns empurravam sua cadeira ao passar pelo corredor. Erguiam o celular.
Uma tripulante a convocou a mudar de assento. Míriam respondeu: “Diga ao comandante que eu comprei a 15C e é aqui que eu vou ficar”. Os hooligans tentavam provocar uma reação intempestiva. Um deles se levantou da cadeira, virou as costas para Míriam e soltou um p... “Gases acontecem”, falou, rindo. Uma vulgaridade que Míriam não teve coragem de relatar em sua coluna no jornal O Globo, intitulada “Ódio a bordo”. A gangue só divulgou um clipe de 20 segundos em que o grupo gritava palavras de ordem contra a TV Globo. Não aparecia o rosto de ninguém.
Telefonei para Míriam após a repercussão mista de solidariedade e ódio nas redes sociais. Alguns petistas davam outra versão, tentando desacreditá-la – assim como se desqualifica uma vítima de estupro ou de abuso. Diziam que ela “precisa arcar com o ônus” de sua opinião e “não tem imunidade por ter lutado contra a ditadura”. Quanta besteira.
Primeiro, opinião só é crime em ditaduras. Segundo, o ônus de se expressar numa democracia é aguentar a discordância, não o linchamento moral. Míriam não deseja imunidade. E sim o direito ao debate e à argumentação, como qualquer cidadã que exerce seu ofício honestamente.
“Acabo de visitar o baú de minhas dores guardadas [com o livro do filho Matheus Leitão Netto, Em nome dos pais]”, diz Míriam. “Aí, entro num lugar fechado, 45 anos depois, e esse grupo me faz lembrar nitidamente da cena em que militares jogavam os cachorros em cima de mim me chamando de terrorista. Quando saí do aeroporto, a vontade era correr para casa. Eles não eram jovens radicais, entusiasmados, idealistas. Eram profissionais do PT, alguns viajando juntos desde o congresso do Recife em 2001. Sou golpista porque mostrava, com números e fatos, como Dilma dobrou o número de desempregados de 6 milhões para 12 milhões? Faço terrorismo econômico porque já em 2010 eu criticava a manipulação de índices fiscais e previa a crise e a recessão que hoje aprisionam e entristecem o país?”
Esses agressores provavelmente nem leem o que Míriam escreve. Mas ouvem Lula gritar, em comício em São Paulo, que “essa Míriam Leitão não acerta uma”, “só dá palpite errado”, e que, se ele for reeleito presidente, vai nomeá-la para o Ministério da Fazenda para “dar uma chance a essa moça”. Lula esquece – ou nunca leu – que Míriam já elogiou o Bolsa Família, as cotas para negros, a política econômica e ambiental do primeiro mandato lulista. Lula precisa parar de insuflar a militância para a guerra. Ao citar nomes de jornalistas em tom jocoso, Lula faz o mesmo que Donald Trump nos Estados Unidos. A guerra à mídia e à imprensa é típica de populistas. Vemos o que Nicolás Maduro faz na Venezuela. Ou o que fazia Cristina Kirchner, na Argentina, ao incitar ataques ao grupo Clarín. Ou, pior, o presidente turco Erdogan, que já condena jornalistas à prisão perpétua.
Em Cuba, os Castros nunca admitiram dissensões e só existe um jornal, do Partido. Lembram como a blogueira cubana Yoani Sánchez foi hostilizada ao vir ao Brasil em 2013?
A intolerância se alimenta do ódio ao diferente, ao que não pensa igual, não se veste igual, não se comporta igual. Pode levar à perda das liberdades e até mesmo da vida, quando a turba justiceira amarra um pretenso ladrão a um poste ou tatua um adolescente na testa por furto. Quando um grupo se arvora o direito de constranger, assediar e linchar, moral ou fisicamente, uma pessoa – e na maioria das vezes essa pessoa é mulher ou negra ou homossexual ou pobre –, perde-se a dignidade humana. Perde-se toda e qualquer razão.
Fonte: Ruth de Aquino - Época
Os militantes voltavam ao Rio após um congresso do PT. Agiram como arruaceiros covardes. Foi uma bravata encorajada pelo grupo. Estavam protegidos pela superioridade numérica e pela leniência da companhia aérea e do piloto, que nem pediu silêncio pelo alto-falante. Não me venham falar de esquerda ou direita. Foi falta de educação e de civilidade. Pegou mal para o PT, que pediu desculpas em nota.
Míriam voltava de uma entrevista em Brasília para a GloboNews em que pressionou duramente o ministro da Justiça, Torquato Jardim, a responder sobre o encontro clandestino entre o presidente Temer e o dono da JBS, Joesley Batista. Ela foi coagida a escutar, da sala de embarque até a aterrissagem, coisas assim: “Terrorista.” “Tem golpista a bordo.” “Essa aí é agente da CIA.” “Shh, shh, é a Míriam Leitão.” Gargalhadas. Alguns empurravam sua cadeira ao passar pelo corredor. Erguiam o celular.
Uma tripulante a convocou a mudar de assento. Míriam respondeu: “Diga ao comandante que eu comprei a 15C e é aqui que eu vou ficar”. Os hooligans tentavam provocar uma reação intempestiva. Um deles se levantou da cadeira, virou as costas para Míriam e soltou um p... “Gases acontecem”, falou, rindo. Uma vulgaridade que Míriam não teve coragem de relatar em sua coluna no jornal O Globo, intitulada “Ódio a bordo”. A gangue só divulgou um clipe de 20 segundos em que o grupo gritava palavras de ordem contra a TV Globo. Não aparecia o rosto de ninguém.
Telefonei para Míriam após a repercussão mista de solidariedade e ódio nas redes sociais. Alguns petistas davam outra versão, tentando desacreditá-la – assim como se desqualifica uma vítima de estupro ou de abuso. Diziam que ela “precisa arcar com o ônus” de sua opinião e “não tem imunidade por ter lutado contra a ditadura”. Quanta besteira.
Primeiro, opinião só é crime em ditaduras. Segundo, o ônus de se expressar numa democracia é aguentar a discordância, não o linchamento moral. Míriam não deseja imunidade. E sim o direito ao debate e à argumentação, como qualquer cidadã que exerce seu ofício honestamente.
“Acabo de visitar o baú de minhas dores guardadas [com o livro do filho Matheus Leitão Netto, Em nome dos pais]”, diz Míriam. “Aí, entro num lugar fechado, 45 anos depois, e esse grupo me faz lembrar nitidamente da cena em que militares jogavam os cachorros em cima de mim me chamando de terrorista. Quando saí do aeroporto, a vontade era correr para casa. Eles não eram jovens radicais, entusiasmados, idealistas. Eram profissionais do PT, alguns viajando juntos desde o congresso do Recife em 2001. Sou golpista porque mostrava, com números e fatos, como Dilma dobrou o número de desempregados de 6 milhões para 12 milhões? Faço terrorismo econômico porque já em 2010 eu criticava a manipulação de índices fiscais e previa a crise e a recessão que hoje aprisionam e entristecem o país?”
Esses agressores provavelmente nem leem o que Míriam escreve. Mas ouvem Lula gritar, em comício em São Paulo, que “essa Míriam Leitão não acerta uma”, “só dá palpite errado”, e que, se ele for reeleito presidente, vai nomeá-la para o Ministério da Fazenda para “dar uma chance a essa moça”. Lula esquece – ou nunca leu – que Míriam já elogiou o Bolsa Família, as cotas para negros, a política econômica e ambiental do primeiro mandato lulista. Lula precisa parar de insuflar a militância para a guerra. Ao citar nomes de jornalistas em tom jocoso, Lula faz o mesmo que Donald Trump nos Estados Unidos. A guerra à mídia e à imprensa é típica de populistas. Vemos o que Nicolás Maduro faz na Venezuela. Ou o que fazia Cristina Kirchner, na Argentina, ao incitar ataques ao grupo Clarín. Ou, pior, o presidente turco Erdogan, que já condena jornalistas à prisão perpétua.
Em Cuba, os Castros nunca admitiram dissensões e só existe um jornal, do Partido. Lembram como a blogueira cubana Yoani Sánchez foi hostilizada ao vir ao Brasil em 2013?
A intolerância se alimenta do ódio ao diferente, ao que não pensa igual, não se veste igual, não se comporta igual. Pode levar à perda das liberdades e até mesmo da vida, quando a turba justiceira amarra um pretenso ladrão a um poste ou tatua um adolescente na testa por furto. Quando um grupo se arvora o direito de constranger, assediar e linchar, moral ou fisicamente, uma pessoa – e na maioria das vezes essa pessoa é mulher ou negra ou homossexual ou pobre –, perde-se a dignidade humana. Perde-se toda e qualquer razão.
Fonte: Ruth de Aquino - Época
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