Roberto Barroso tentou liderar a corrente segundo a qual não cabe nem mesmo o exame de legalidade de um acordo de delação; como iria perder, mudou de ideia para formar nova maioria
Com a máxima vênia, a imprensa, quase
sem exceção, está comprando as lebres vendidas por Roberto Barroso como
se fossem gatos. Notem que, na inversão do ditado, expresso mais apreço
pelos bichanos. E não só. O texto que está no site do Supremo também não
ajuda. O fato é o seguinte: os derrotados estão surgindo como os
vitoriosos do embate, e os vitoriosos, como os derrotados. Vou explicar.
O que estava em pauta, no Supremo, na
questão de ordem e no agravo regimental? No fim das contas, tratava-se
de saber se um relator pode homologar o que lhe der na telha num acordo
de delação, ficando também o Ministério Público Federal autorizado a
abusar do direito criativo. Bem, a resposta é não! Nota à margem: por 11
a zero, já sabemos, os ministros decidiram que a relatoria fica com
Edson Fachin.
Vamos agora destrinchar o imbróglio. E, em parte, já tratei dele aqui.
Ao avaliar a intocabilidade ou não do
acordo de delação, Fachin reconheceu o que sabia ser óbvio: o colegiado
poderia intervir, na hora da sentença, se constatada alguma ilegalidade.
Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, por exemplo, o seguiram no voto
porque, por óbvio, não lhes pareceu razoável que um acordo pudesse
conter ilegalidades e causas de nulidade.
Quem tentou dar o golpe, digamos,
jurídico-conceitual? Ora, ele, o “jurista” mais criativo do Ocidente:
Roberto Barroso. Para esse monstro das letras jurídicas, um acordo é a
voz de Deus, e nada a ele se deve opor. O homem foi muito eloquente:
pode contemplar o que está e o que não está na lei. E ao colegiado cabe
avaliar apenas a eficácia, mas entendida tal palavra como o mero
cumprimento de rituais burocráticos.
Não deu outra! Fachin sentiu que Barroso
conferia poderes realmente absolutos ao relator, ainda que ao arrepio
da lei, e achou a coisa linda. Reformou seu próprio voto, aderindo, nos
debates, à heterodoxia barrosiana. Rosa Weber e Luiz Fux logo se
juntaram à dupla: ele porque estava entendendo o que estava em curso;
ela, muito provavelmente, porque não estava. Celso de Mello, com
retórica caudalosa e nem sempre compreensível, se somou ao grupo.
Do outro lado, acabaram ficando os cinco
ministros que entendiam que um acordo de delação entre um bandido e um
procurador não pode se sobrepor às leis do país e à própria
Constituição. Refiro-me a Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Marco
Aurélio, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Para eles e para o bom
senso, a homologação feita pelo relator não tem relação vinculativa com o
Judiciário — não o obriga a ratificar a decisão, independentemente das
condições.
É verdade que havia divergência entre
esses cinco sobre o momento da intervenção do colegiado. Mendes, por
exemplo, defendeu que a própria homologação a ele se submetesse. Os
outros não o seguiram. Mas era consenso nesse grupo que, na hora da
sentença, a legalidade do acordo poderia ser questionada e seus termos
poderiam ser revistos, coisa a que Barroso se opunha.
Chamei a atenção de vocês aqui para o
voto realmente arrasador que deu Gilmar Mendes na quarta-feira.
Desmontou de maneira implacável a tese de Barroso e sua patota,
deixando-os inermes. Faltava o voto de Cármen Lúcia, que, ora vejam,
iria acabar aderindo, desta feita, ao Estado Democrático e de Direito. Coube a Barroso, nos debates, dar um,
como chamarei?, “golpe de mídia”. Viu que seria derrotado e se apressou a
compor com ao menos parte do outro lado. Então a coisa ficou assim: um
acordo de delação, obedecidos dispositivos da lei, deve, em regra,
produzir seus efeitos, mas sob a égide do parágrafo 4º do artigo 966 do
Código de Processo Civil, a saber: “os atos de disposição de direitos,
praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e
homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no
curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei”.
Pronto! Era o que interessava. Cármen Lúcia concordou. Logo, na hora da sentença, o colegiado
pode, sim, rever o acordo de delação se ele transgredir a lei. Barroso e
os outros quatro fizeram de conta que era justamente isso o que queriam
desde o início. É mentira! Seus respectivos votos eram claríssimos: o
Judiciário se vincula ao acordo homologado e ponto final.
Os cinco extremistas do “colegiado não
apita” deram um triplo saldo carpado hermenêutico e se juntaram a
Cármen, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, formando essa maioria de
oito que vocês leem por aí. E aparecem como votos vencidos Gilmar
Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, embora, na prática, tenham
sido os reais vencedores — Mendes em especial, autor do voto que começou
a mudar o que caminhava para um vexame inédito.
E por que não estão também os três com a maioria? Porque defendem uma intervenção do colegiado mais ampla do que a aprovada. Não se esqueçam: cinco ministros queriam
declarar a soberania absoluta do acordo homologado pelo relator —
soberania, inclusive, sobre a Constituição e o Supremo. Lembro de novo
seus nomes: Barroso, Fux, Rosa, Fachin e Celso. Eles perderam. A vitória
está com aqueles que defendiam que um acordo tem de se submeter à
legalidade e que o colegiado pode, sim, rever uma delação se esta for
agredida.
Fonte: Blog do Reinaldo Azevedo
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