Os ‘recursos não contabilizados’ viraram lavagem de dinheiro. Caixa 2 passou de infração eleitoral para crime grave
Coluna publicada em O Globo
A palavra “mensalão” apareceu na imprensa em setembro de 2004, utilizada
pelo então deputado Miro Teixeira, para explicar aquilo mesmo que seria
provado mais adiante: que o PT montara um sistema para remunerar
aliados. Miro repercutia, para o “Jornal do Brasil”, uma reportagem de capa da
revista “Veja”, na qual se dizia que o PT comprara o apoio do PTB por R$
150 milhões. O assunto, aliás, circulava no Congresso. Pois parece que os próprios deputados sérios não colocaram muita fé no
caso. Meio que deixaram para lá. Políticos e jornalistas tiveram
comportamento semelhante. Eis o que se dizia: isso não vai dar em nada,
corrupção sempre ocorreu, é coisa pequena, um problema moral, não
político, muito menos econômico.
Talvez tivesse ficado mesmo por aí se um empresário de bronca com sua
situação não tivesse filmado um diretor dos Correios embolsando a
mixaria de três mil reais, mas contando que o esquema funcionava sob o
comando de Roberto Jefferson, então deputado federal e presidente do
PTB. A revista “Veja” publicou a história em maio de 2005. Seguiram-se alguns
meses de embates políticos, com a oposição tentando instalar uma CPI, e
o governo Lula tentando abafar o escândalo. Lá pelas tantas, Roberto
Jefferson, como ele mesmo disse, desconfiou que o PT estava armando
contra ele.
A jornalista Renata Lo Prete, então na “Folha”, sabendo do que se
passava nesses bastidores, conseguiu a entrevista que mudou tudo.
Jefferson contou como Delúbio Soares, então tesoureiro do PT, pagava 30
mil mensais a deputados, em troca de votos para o governo. Isso foi em
junho de 2005. O mensalão era, digamos, oficializado nesse valor — R$ 30 mil/mês.
Também era mixaria, como se saberia depois, mas Jefferson apresentou o
operador do esquema, o publicitário Marcos Valério, dono de agências em
Belo Horizonte.
Tudo apareceu como o “escândalo dos Correios”, objeto de inquérito na Justiça Federal de Minas e de uma CPI no Congresso. Políticos e empresários apanhados, quando perceberam que não havia como
negar a distribuição de dinheiro, contrataram os mais conhecidos
advogados criminalistas, liderados por Márcio Thomaz Bastos, ministro da
Justiça de Lula. Estes definiram uma linha de defesa: o dinheiro era
para campanhas eleitorais, o famoso caixa 2 ou, como inventou Bastos,
“recursos não contabilizados”. Ou seja, uma pequena infração eleitoral, a
ser resolvida com uma revisão da contabilidade dos partidos e, talvez,
algumas multas.
Da CPI resultaram as cassações de José Dirceu e Jefferson — e o
Congresso queria parar por aí. Na Justiça, em julho de 2005, o processo
foi para o Supremo Tribunal Federal, por causa do envolvimento de
pessoas com foro privilegiado. Ainda se dizia: não vai dar em nada. E como o inquérito se arrastava,
parecia mesmo que seria mais um daqueles casos que morreriam nas gavetas
do tribunal. Demorou sete anos nisso, mas em agosto de 2012 o Pleno do
STF começou o julgamento, sob a liderança do então presidente da Corte,
ministro Joaquim Barbosa. Terminou em março de 2014, com a derrota
fragorosa das grandes bancas de advocacia.
Os “recursos não contabilizados” viraram lavagem de dinheiro. Caixa 2
passou de infração eleitoral para crime grave. A distribuição de
dinheiro foi atribuída a uma quadrilha. Em resumo, sofisticado roubo de
dinheiro público. Ainda era pouco. Nesse mesmo março de 2014, a Lava-Jato se mostrava ao
país, com a primeira operação de vulto. Foi preso Paulo Roberto Costa,
ex-diretor da Petrobras, que viria a ser o primeiro delator. Aparecia o
instituto da delação premiada, tão contestado, de novo, pelas grandes
bancas.
Não era mais coisa de R$ 30 mil/mês, mas de bilhões de dólares. Mas por que estamos contando isso tudo? Porque, de novo, estão dizendo
que a Lava-Jato é uma armação para tirar Lula da política. Que a
Lava-Jato exagerou, é óbvio, mas como poderia pegar esse bando de
ladrões ilustres e poderosos? Pensando bem, não é a Lava-Jato que exagera. “Eles” exageraram, continuam tentando derrubar a operação.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
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