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segunda-feira, 16 de março de 2020

Tempestade perfeita - O Estado de S.Paulo

Denis Lerrer Rosenfield 

Bolsonaro  planta ventos e fogueiras. [sic] Poderá levar o País a um beco sem saída.

Ambiente deveria ser de apaziguamento, não de enfrentamento, para ela não se consumar

O Brasil está entrando em estado de tempestade perfeita, numa confluência de fatores que tende a agravar uma situação que já se apresentava ruim. A economia não está decolando, o Banco Central e grandes bancos refazem suas previsões para este ano abaixo do que estava sendo estimado - isso antes da pandemia do coronavírus. O bolsonarismo continua impregnando as redes sociais com ataques aos adversários e, mais concretamente, às instituições, como a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal, tidos por inimigos.

A pandemia do coronavírus expõe uma desorientação do governo, com presidente e ministros se contradizendo entre si, cada um procurando sinalizar para uma orientação específica. No início foi a minimização do episódio, como se fosse uma mera “marolinha”. Todos se tornaram discípulos do ex-presidente Lula, com as consequências desastrosas já conhecidas desde aquele então. Depois o ministro da Saúde apontando para direções sensatas e preventivas sem que fique, porém, claro como o governo pretende enfrentar uma situação de crise, por falta de orçamento e outras medidas emergenciais. A imagem transmitida é de improvisação. Só palavras de apaziguamento não bastam. Não é um problema de psicologia pública, mas de saúde física da população, sobretudo doentes crônicos e idosos.

Capítulo à parte é o problema das reformas, que ressurge agora como um “remédio” para o coronavírus, sem que se saiba ao certo a relação direta entre eles, salvo no fator fiscal. A questão central é que o governo ou não sabe ou não quer negociar as reformas com o Legislativo, contentando-se em enviar projetos, sem diálogo, ou em falar deles sem os enviar, caso das reformas tributária e administrativa. O governo está transferindo sua responsabilidade, procurando suscitar a adesão da opinião pública, numa espécie de criminalização da classe política, como se todos fossem corruptos. [a classe política, especificamente senadores e deputados, está tão preocupada com as reformas que estão cogitando  recesso devido o coronavírus = isso mesmo trabalhando, quando o fazem, 3 dias por semana.]


Não adianta apresentar um conjunto de reformas já enviado e não apreciado sem a negociação correspondente. Executivo e Legislativo são ambos expressões da soberania popular, eleitos, e devem dialogar entre si sobre o que é melhor para o Brasil, goste-se ou não dessas articulações. Sem elas estaremos fora da democracia. Ninguém detém o monopólio do bem e da verdade. Não é porque um projeto foi enviado que ele deve ser aprovado. O Legislativo não é um carimbador do Executivo.

Tampouco é de valia não estabelecer nenhuma prioridade entre os projetos enviados. [quem envia o projeto tem a faculdade de escolher se decide sobre a prioridade ou deixa com o Legislativo - especialmente no caso do Presidente Bolsonaro, que se considerar determinado projeto urgente, estará condenando a ir para o final da fila. A regra do Legislativo com o presidente Bolsonaro é: se ele faz apanha, se não faz, apanha também.] Não são a mesma coisa um projeto que trate da carteirinha digital de estudantes ou que diminua os pontos da carteira de motorista e uma PEC, a dita Emergencial, que versa sobre o controle dos gastos públicos, com gatilhos que garantam, pela redução de salários e jornadas de trabalho, o teto dos gastos. Como muito bem assinalou o ex-ministro Delfim Netto, a aprovação desta última deveria ser a prioridade maior do governo, sendo um complemento da Lei do Teto, assegurando-a. Revogar essa lei seria a volta ao populismo de curto prazo e o estouro das finanças públicas. [Delfim Netto, apesar de nonagenário, não conseguiu aceitar que salário de servidor público não gera crise.
Ele quando ministro adotou medidas buscando tal redução e não obteve resultados.]

Quanto às reformas tributária e administrativa, estamos num mero jogo de palavras. Nem uma nem outra foi sequer enviada à Câmara dos Deputados ou ao Senado. Discute-se, do ponto de vista do governo, o inexistente. A dita reforma administrativa é uma ilustre desconhecida. Do que se está falando precisamente? A reforma tributária, para além da tentativa fracassada de reintrodução da CPMF, tampouco foi apresentada pelo governo. O Senado e a Câmara, individualmente, têm projetos próprios, diferentes um do outro, e agora se tenta harmonizá-los, sem que o governo, por sua vez, tenha feito proposta alguma.

A política presidencial do confronto tem tido o governo como sua própria vítima, prejudicando o Brasil. O caso do Benefício de Prestação Continuada, ao aumentar os benefícios dos idosos e deficientes, produzindo um rombo de R$ 20 bilhões, mostra o ponto a que chegamos. Primeiro, não deixa de ser risível que os velhinhos e deficientes sejam os responsáveis pelo mais novo rombo fiscal! Poderiam ter escolhido melhor outro responsável. Segundo, o Congresso procurou revidar os ataques que tem sofrido dos grupos bolsonaristas aprovando uma lei sem previsão orçamentária. Valeu o confronto entre os dois Poderes, tendo como pano de fundo uma questão de justiça social. Se o governo não confrontasse tanto o ambiente político, seria mais fácil equacionar os problemas graves do presente.

Por último, foi uma mostra de sensatez do presidente Bolsonaro ter desestimulado, na verdade, cancelado, as manifestações do dia 15. O motivo apresentando foi de saúde pública, relativo ao perigo de contaminação pelo coronavírus, embora a razão possa também ter sido outra, a do fracasso provável dessas manifestações, que atingiria o próprio prestígio dos bolsonaristas. Em todo caso, o ambiente deveria ser de apaziguamento, e não de enfrentamento, para que esta tempestade perfeita não se consume.

Denis Lerrer Rosenfield, filósofo - O  Estado de S. Paulo 



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