Em meio ao agravamento da crise sanitária, a discussão sobre a necessidade de isolamento vai parar nos tribunais e começa a polarizar o país
A polêmica criou tamanho clima de insegurança que começou a gerar conflitos entre municípios e estados. Em Santa Catarina, o governador Carlos Moisés (PSL) optou por relaxar a quarentena no estado, liberando o comércio. Avenidas de cidades importantes como Joinville e Chapecó ficaram lotadas, mas a capital, Florianópolis, adotou caminho inverso. O Poder Executivo local manteve as restrições em vigor e implementou medidas ainda mais drásticas: testará todos os passageiros que chegarem nos poucos voos disponíveis. Conflito semelhante ocorre em Mato Grosso, onde o governador Mauro Mendes (DEM) baixou um decreto para reabrir o comércio no estado. O prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro (MDB), foi à Justiça para garantir o direito de manter o isolamento social. Ganhou a ação e, agora, cogita implementar um toque de recolher em bairros que não respeitam as medidas.
A discussão não fica mais restrita às autoridades e chegou às ruas de algumas cidades na forma de passeatas e carreatas contra o isolamento social. Em São Paulo, um pequeno grupo fez barulho recentemente na Avenida Paulista, a principal do município, carregando um caixão para fazer o enterro simbólico do governador do estado que concentra o maior número de casos de coronavírus no país. Esse protesto ocorreu após João Doria (PSDB) dizer que poderia usar a força policial para obrigar as pessoas a respeitar as medidas protetivas. O tucano diminuiu o tom do discurso no início da semana, após sua equipe de comunicação constatar que ele havia exagerado na dose, o que poderia ser benéfico a Bolsonaro, com quem vem trocando duras críticas sobre a melhor forma de combater a pandemia.
O presidente já acusou Doria de forçar a quarentena para fragilizar a economia do país e atrapalhar seus planos de reeleição. A divergência chega até a detalhes de ações, como o uso de geolocalização de operadoras de celular para ajudar a monitorar com mais precisão o nível de isolamento da população. Doria utiliza o sistema desde o início de abril e anunciou que pretende ampliar sua abrangência. Algo semelhante seria adotado no governo federal, mas Bolsonaro vetou o projeto. Em outros estados, governadores deram de ombros para o corpo técnico das suas administrações e cederam às pressões externas. Após se reunir com o presidente, o governador mineiro Romeu Zema (Novo) gravou um vídeo dizendo que o “vírus precisa circular” e admitiu que poderá flexibilizar a quarentena. Políticos locais afirmam que Zema tem sofrido pressões de empresários para ordenar a reabertura do comércio. O prefeito da capital, Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), avisou que não vai seguir a orientação. “De que adianta você se eleger dizendo que indicará um secretariado técnico se, na hora em que precisa usá-lo, você ignora o que ele tem a dizer?”, indaga.
A indevida politização do tema alcançou tal nível que chegou a dar margem a discursos demagógicos. Exemplo disso é a postura do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que virou um dos principais conselheiros do presidente na área de saúde e, não por acaso, também defensor ferrenho do fim do isolamento social a ponto de declarar há alguns dias que a pandemia estava perto do fim no Brasil (um absurdo completo). “Quarentena só vale para a classe média, que tem geladeira cheia e dinheiro no banco”, afirmou. “Os pobres estão muito mais preocupados com a fome do que com o vírus.” Falas desse tipo espalham confusão no momento em que o país precisa concentrar esforços para reduzir o ritmo de propagação da doença — o que exige isolamento social. “No fim de março, tivemos um movimento de pessoas ficando em casa. Mas aí o Bolsonaro discursou na TV e percebemos que, logo no dia seguinte, o comércio voltou a abrir e aumentou o número de pessoas nas ruas. O que a gente vê agora é até mais aglomeração do que antes”, diz Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo.
Publicado em VEJA, - edição nº 2683, de 22 de abril de 2020
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