O
Brasil está vivendo neste final de ano alguns espetáculos de intenso
valor didático para as aulas de educação moral e cívica das nossas
escolas. Através delas, os alunos que prestarem alguma atenção ao que o
professor está falando – caso o professor esteja falando só o que é
fato, sem inventar nada – vão aprender na prática o que significa uma
coisa que os adultos chamam de “instituições”. No espetáculo do momento,
a “Câmara Alta” (é como se diz) que representa os 26 Estados
brasileiros e o Distrito Federal tem um membro, justo o “vice-líder” do
governo, que foi flagrado escondendo dinheiro na cueca
– segundo as denúncias, dinheiro que roubou das verbas de combate à
covid, como se roubava em outros tempos a caixinha de esmolas da
igreja.
É essa gente, que está de coração partido em seu apoio ao colega da cueca, que vai nomear sabem quem? O novo ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF), a máxima corte de Justiça da nação, que acaba de ser escolhido
pelo presidente da República e que ficará atracado à sua cadeira até o
remoto ano de 2047. Atenção: se não tivesse sido pego, o tal senador
seria um dos 81 que votariam no preferido do presidente.
Pode?
Não só pode, como deve – aliás, por força do que estabelecem as nossas
“instituições”, não há nenhum outro jeito de se entregar o cargo para o
homem. Qual é a moral – ou a cívica – de deixar uma decisão fundamental
para o País, como o preenchimento dos 11 cargos do STF, abandonada ao
capricho do presidente e à aprovação de uma das aglomerações de
políticos mais desmoralizadas do planeta Terra – o Senado Federal
do Brasil? Não é que os senadores sejam desmoralizados por causa de
alguma “hostilidade” ao exercício “da política”, como dizem eles
próprios e seus defensores. São assim por causa dos atos que praticam –
como, por exemplo, esconder dinheiro roubado na cueca. Obviamente, não
têm condição para aprovar o licenciamento de uma carrocinha de milho
verde; a ideia de que um conjunto desses possa aprovar os membros do
STF, então, é simplesmente incompreensível.
Já não bastaria esse próprio dr. Kassio Marques que o presidente Jair Bolsonaro indicou
para o cargo – uma nulidade absoluta, que enfiou trechos plagiados de
um colega em sua “tese” de doutorado numa faculdade portuguesa de
segunda linha e cujo único mérito oficial para o cargo, segundo o
próprio presidente, foi “tomar tubaína” com ele? Não, isso aí ainda é
pouco, bem como o horror que o novo ministro tem de condenações por
ladroagem. Foi preciso, também, enfeitar o bolo com a cereja do senador
da cueca - esfregando na cara do público, bem agora, quem são os
indivíduos que constroem o plenário do STF. É a “normalidade
democrática”.
Você acredita que os demais senadores são muito
melhores que o companheiro da covid?
Quantos? Quais?
O novo magistrado
do Supremo é o herói de um outro caso clínico do Senado – um senador que
foi oficialmente denunciado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro
pelo Ministério Público e cujo caso está sob a apreciação do STF -
justamente do STF. É saudado por mais um caso extremo, o senador Renan
Calheiros, como o homem que pode “salvar” o Brasil do “estado
policialesco” em que estaria vivendo por causa dos processos judiciais
contra a corrupção. Aí já é demais, até para os alunos do curso primário
– mas, na vida real, ainda não é demais.
O Senado e as
“instituições” estão indo ainda mais longe nessa marcha da insensatez; o
senador pego em flagrante pediu o seu “afastamento" do cargo por “121
dias” – à espera de que até lá essa história já tenha caído em exercício
findo, e ele fique de novo livre, solto e pronto para novos
empreendimentos. E quem é o “suplente”? O próprio filho do
senador da cueca. Que tal? É um desses casos onde se junta o insulto à
injúria. O “suplente” é uma das aberrações mais grosseiras da política brasileira – uma chave falsa para permitir que entrem no Congresso
sujeitos que não receberam um único e escasso voto dos eleitores, como
pode ser o caso do tal filho. Serve, também, para eleitos renunciarem
aos mandatos e venderem seu lugar para milionários que não querem passar
pelo perrengue de disputar uma eleição.
Os políticos dizem que é
preciso substituir congressistas que, por alguma razão, deixem de
exercer os seus mandatos. E por que não se faz uma nova eleição para
isso? Afinal, votar é o dever mais sagrado que um brasileiro pode ter,
segundo vive dizendo o “Tribunal Superior Eleitoral”. Ou, então, por que
não se deixa o cargo simplesmente vago – que diferença iria fazer?
Aliás: seria um a menos para roubar. Já é alguma coisa.
J.R. Guzzo, jornalista - O Estado de S. Paulo 21 outubro 2020