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Fúria e ressentimentos são continuamente atiçados e se espalham pelo mundo. A solução só virá quando se abrir uma brecha no império do rancor
DO LADO DE CÁ - Violência: soldado de Israel usa a força para reprimir manifestante palestino na Cisjordânia (Jaafar Ashtiyeh/AFP)
As guerras são a mais extrema expressão da barbárie e desgraçadamente não faltam exemplos de horrores e mortandade ao longo da história.
Mas poucas vezes a violência sem limites escalou de maneira tão vertiginosa quanto a que se observa no duelo atual entre a força militar de Israel e os militantes do Hamas, que acaba de completar um mês.
A trágica contabilidade de mortos partiu do altíssimo patamar de 1 400 pessoas massacradas no dia 7 de outubro, quando o grupo palestino cruzou os limites da Faixa de Gaza em um devastador ataque-surpresa.
A resposta israelense foi deslanchar uma ofensiva para aniquilar o inimigo que, na conta do Ministério da Saúde da superpovoada Gaza, já matou mais de 10 000 pessoas, quase metade delas crianças.
Os sangrentos trinta dias de confronto desembocaram em uma agressividade de proporção inédita no campo de batalha da opinião pública, com o disparo maciço nas redes sociais de cenas de execuções, bombardeios de escolas, colapso de hospitais e bebês sem vida.
O mundo se repartiu entre contra e a favor, sufocando o meio-termo e abrindo espaço para o mais virulento preconceito. “A mente está cheia até a borda com nossa própria dor e não sobra espaço nem para reconhecer a dor dos outros”, escreveu o historiador e filósofo israelense Yuval Harari. Pairando sobre tudo, o ódio, sentimento que cega e escraviza, vai cumprindo seu papel de aprofundar as históricas desavenças entre árabes e judeus, fazendo delas uma questão pessoal, de indivíduo contra indivíduo, com ecos em toda parte e sem solução à vista.
Nos últimos dias, tanques e tropas cercaram a cidade de Gaza, a maior do enclave, e iniciaram a incursão pela rede de túneis controlada pelo Hamas. “Estamos em uma nova etapa da guerra”, declarou o porta-voz do Exército Daniel Hagari, ao mesmo tempo em que o secretário-geral da ONU, António Guterres, subia o tom, afirmando que Gaza está se tornando “um cemitério de crianças”. Discute-se a implantação de “pequenas pausas humanitárias” nos combates — as forças israelenses deram quatro horas para moradores da Cidade de Gaza deixarem o local —, e as listas para a saída de estrangeiros e feridos graves pelo Egito são divulgadas a conta-gotas (34 brasileiros estão na fila).
Não se sabe o que será de Gaza após a ofensiva militar. Negociações estão em curso para que a mais moderada Autoridade Palestina, que administra a Cisjordânia, assuma o território, mas ela terá que conviver com a presença israelense— o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu antecipou que o país “será responsável pela segurança por um período indefinido”.A marcha da insensatez se acelerou com a declaração de Amihai Eliyahu, ministro do Patrimônio — cargo criado para acomodar a extrema direita religiosa que faz parte do governo —, de que o uso de bombas nucleares em Gaza “seria uma opção”. Foi afastado e desautorizado, mas o estrago estava feito.
Nada do que se discute agora sinaliza um caminho para a paz — pelo contrário, são ações que, como já aconteceu outras vezes, cristalizam raiva e ressentimentos que se espalham pelo planeta.
Os casos de antissemitismo e de islamofobia mais do que triplicaram na Europa e nos Estados Unidos no último mês. No estado de Illinois, o menino de origem palestina Wadea Al Fayun, 6 anos, foi esfaqueado pelo dono do apartamento onde ele morava com a família, um septuagenário que, segundo sua mulher, “escuta talk shows conservadores no rádio” e andava obcecado pelo conflito no Oriente Médio.
Em Lyon, na França, uma mulher judia foi ferida a facadas por um homem que bateu à sua porta e, para não deixar dúvida quanto à motivação do crime, pichou uma suástica na entrada da casa.
Estrelas de Davi apareceram pintadas na fachada de prédios habitados por judeus em Paris.
No longínquo Daguestão, país muçulmano às margens do Mar Cáspio, uma turba invadiu o saguão de um aeroporto pretendendo linchar passageiros que desembarcavam de Tel Aviv. “No mundo conectado em que vivemos, quem já têm inclinação para a violência reforça sua visão. As pessoas estão buscando motivos para confirmar seus preconceitos”, diz Wendy Via, cofundadora do Global Project Against Hate and Extremism.
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As expressões de ódio despertadas pelo conflito entre árabes e judeus derramaram-se, com força nunca vista, pelas universidades americanas, um terreno minado pela polarização política e pelo racha talhado pela cultura woke, que leva às últimas consequências o conceito do politicamente correto. Em Harvard, trinta organizações estudantis não só condenaram Israel como abraçaram o execrável slogan “Do rio ao mar, a Palestina será livre” — à primeira vista inocente, mas que embute a sumária destruição total do Estado judeu (por repetir o desatino, Rashida Tlaib, única deputada de origem palestina dos Estados Unidos, recebeu um raríssimo voto de censura da Câmara).
Em Cornell, outra instituição de elite, um aluno disparou nas redes sociais ameaças de morte a estudantes judeus. Tulane, em Nova Orleans, foi palco de agressões generalizadas entre apoiadores dos dois lados quando um manifestante tentou incendiar uma bandeira de Israel. Em Stanford, na Califórnia, a polícia investiga como crime de ódio a morte de um judeu nas proximidades de um ato pró-Palestina. “O discurso, no meio universitário, repisa que os dois povos não podem viver naquela região porque um lado representa o domínio imperialista e o outro rejeita a civilização ocidental. É a islamofobia batendo boca com o antissemitismo”, resume Michel Gherman, professor de história da UFRJ nascido em Israel e tachado de antissemita em um debate na PUC carioca.
O antissemitismo observado nos dias de hoje é uma chaga que teve origem no fim do século XIX, concentrado principalmente na Europa.
As aceleradas mudanças políticas e econômicas da época, um processo repleto de conflitos que iriam descambar em duas guerras mundiais, desagradaram a nacionalistas que, em busca de um bode expiatório, atribuíram os problemas surgidos à minoria religiosa que controlava parte das instituições financeiras — início de uma perseguição movida pela intolerância que culminou no Holocausto e nos 6 milhões de mortos pelas atrocidades nazistas.
A fogueira da islamofobia se acenderia meio século depois,quando árabes começaram a migrar para países europeus em busca de vida melhor. Ela explodiria neste século, em que as imensas levas de imigrantes ilegais, associadas à violência latente nas periferias pobres das grandes cidades, desencadearam um turbilhão antimuçulmano. “O antissemitismo e a islamofobia têm a mesma raiz ideológica e é justamente isso que impede que as duas vítimas se reconheçam em pé de igualdade e possam dialogar”, ressalta Arlene Clemesha, professora de história árabe da USP.
O clima de animosidade entre árabes e judeus se fez presente já na origem dos dois povos: como era comum na convivência das tribos naquela época, as escrituras relatam choques entre os descendentes dos dois filhos de Abraão — Ismael, que viria a formar a nação árabe, e Isaac, tronco do judaísmo.“Os dois povos semitas entraram em conflito por terras já em XVII a.C.”, relata o teólogo Jacir de Freitas, autor de A História de Israel e as Pesquisas Mais Recentes. Apesar dessas diferenças, árabes e judeus repartiram o que é hoje a Palestina com relativa civilidade durante milênios.
O conflito do qual a guerra atual é a mais recente e mais mortífera consequênciatem como ponto de partida as movimentações que resultaram na proposta, apresentada pela ONU em 1947, de divisão da Palestina para a formação do Estado de Israel.
Nacionalistas palestinos e sionistas se mobilizaram contra e a favor da partilha, a Liga Árabe tomou partido e os tiros começaram a ser disparados.
Três guerras entre israelenses e alianças militares árabes, inúmeros e horripilantes atentados terroristas e seguidas revoltas sufocadas a bala e bombas depois, judeus e palestinos vivem no mesmo espaço, mas separados por uma montanha de fúria e desconfiança. “O ódio não é a causa dos acontecimentos históricos, mas sim seu subproduto. Frequentemente políticos e ideólogos incitam esse sentimento para ganhar poder e influência”, ensina Norman Naimark, professor de história da Universidade de Stanford.
Sentimento inerente à condição humana, o ódio se situa entre a raiva e o nojo, duas das seis emoções básicas universais descritas pelo psicólogo americano Paul Ekman. Ambas têm lá sua justificativa: enquanto a raiva pressupõe ação diante de algo percebido como errado ou injusto, o nojo serve para evitar contato com perigos e ameaças — na evolução, manteve humanos longe de comidas venenosas ou estragadas. “Mas a combinação é destrutiva”, explica Robert Sternberg, professor de psicologia da Universidade Cornell. “Seu estímulo provém de narrativas falsas, que convencem as pessoas de que o outro está roubando seus recursos e seu destino.” O psicólogo social Aharon Levy completa: “Em uma situação de ódio entre grupos, cada lado acredita que está moralmente correto, ao passo que o inimigo é imoral e não pode mudar”.
A dinâmica do ódio já serviu de base para episódios estarrecedores de massacres de populações. Em 1995, 8 000 muçulmanos foram brutalmente assassinados por forças sérvias em Srebrenica, na Bósnia e Herzegovina. Um ano antes, os hútus executaram 800 000 tútsis, só por serem tútsis, em Ruanda.
No mais impactante ato de terrorismo jamais visto, dois aviões lotados derrubaram as torres gêmeas do World Trade Center, em plena Nova York, matando cerca de 3 000 pessoas, todas civis.
Individualmente, o escritor indo-britânico Salman Rushdie passou anos escondido, com a cabeça posta a prêmio por citar o profeta Maomé no romance Os Versos Satânicos.
Voltou a circular e em 2022, mais de três décadas depois, um fanático o esfaqueou.
Sobreviveu, mas perdeu a visão de um olho e teve o fígado perfurado.
Por outro lado, conflitos que pareciam impossíveis de ser contornados deixaram de existir: franceses se reconciliaram com ingleses após séculos de enfrentamentos, japoneses fizeram as pazes com americanos, depois da II Guerra, alemães assumiram a responsabilidade e se penitenciaram pelos crimes nazistas. No sofrido Oriente Médio, resta torcer para que uma brecha se abra e a voz da razão possa um dia ser ouvida.
Publicado em VEJA, edição nº 2867, de 10 de novembro de 2023
Manifestante em frente à embaixada de Israel, em Madri, no dia 18 de outubro de 2023 (imagem ilustrativa)| Foto: EFE
O mundo está vivendo a sua pior onda de antissemitismo desde a perseguição aos judeus no regime nazista da Alemanha de Hitler.
Desta vez, vem disfarçado de apoio à “causa palestina”. Mentira: é antissemitismo puro, direto na veia, e não um tipo de ação política legítima. Esse surto de ódio vem sendo armado, peça por peça, há muito tempo – desde que as pessoas começaram a descobrir que podiam se comportar como nazistas sem correr nenhum risco. Ao contrário: o preconceito racial foi se tornando a atitude politicamente mais correta.
A desculpa era perfeita. O sujeito podia ser antissemita dizendo que era “antissionista”, ou anti-Israel, ou anti-imperialismo dos Estados Unidos – e a favor da “libertação da Palestina”, do Terceiro Mundo e do “campo progressista”. Depois do último ataque terrorista contra Israel, no qual 1.400 civis foram mortos, bebês assassinados e mulheres estupradas, o racismo antijudeu deu o seu maior salto desde o holocausto promovido na Alemanha nazista. Israel reagiu, exercendo o seu direito à autodefesa. Imediatamente deixou de ser vítima e passou a ser acusado de agressor. Junto com as condenações a Israel, as cobranças de “paz” e os apelos humanitários, vieram imediatamente as manifestações explícitas de ódio aos judeus.
Israel está combatendo um grupo terrorista, o Hamas, que cometeu os crimes em massa do começo de outubro e prega, oficialmente, o genocídio do povo israelense – diz que os judeus devem ser jogados coletivamente no mar, e que o seu Estado tem de ser “extinto”. Por ter reagido à agressão com bombardeios e a invasão de Gaza, a região controlada pelo Hamas, vem sendo denunciado por “genocídio”, por “crimes contra a humanidade”, por manter uma “prisão a céu aberto”, por massacrar civis e daí para baixo.
Não se diz, nunca, que não haveria nenhum palestino morto se os terroristas não tivessem feito a chacina que fizeram contra Israel.
Exige-se um “cessar fogo” por parte de quem foi agredido – algo como exigir dos Estados Unidos um cessar fogo em resposta ao ataque do Japão contra Pearl Harbour.
Cobram “proporcionalidade”, quando o direito internacional determina que só pode ser considerada desproporcional a reação que ultrapassa os limites do seu objetivo estratégico. O objetivo de Israel é destruir o Hamas, para não ser destruído por ele – e é isso, exatamente, o que está fazendo.
Foi a oportunidade para se abrir a comporta do antissemitismo. Junto com as condenações a Israel, as cobranças de “paz” e os apelos humanitários, vieram imediatamente as manifestações explícitas de ódio aos judeus. Gritos e cartazes de passeatas não ficam só no “antissionismo” – exigem com todas as letras que o mundo “se livre dos judeus”, estejam onde estiverem.
Estrelas de David são pintadas em residências e outros imóveis de cidadãos de origem israelita, como denúncia: “Aqui tem judeu”.
Atacam-se sinagogas. Passageiros de um voo internacional vindo de Israel sofrem tentativas de ataque físico.
O que qualquer coisa dessas tem a ver com a “defesa do território palestino”? É racismo, de novo, e em escala mundial – agora com a máscara de uma “causa justa”.