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sábado, 24 de junho de 2023

Juristocracia midiática - A percepção do cidadão comum - Gazeta do Povo

Vozes - Luciano Trigo

Foto

Já escrevi em mais de uma ocasião que, na percepção de muitos cidadãos comuns, dois atores da democracia brasileira que deveriam se caracterizar pela imparcialidade há muito se afastaram desse imperativo e deixaram claro que têm lado: a grande mídia e a Justiça.(Disclaimer: Atenção! Fiz questão de sublinhar, grifar e destacar em negrito a frase acima para ficar claro que estou tratando de percepções, que podem corresponder ou não à realidade – mas nem por isso devem ser ignoradas, porque têm consequências. Mesmo com a crescente relativização da liberdade de expressão em nosso país, acredito que ainda podemos divagar – sem temer ter o passaporte cancelado ou coisa pior – sobre a percepção que a sociedade tem do processo político.)

Certa ou errada, muita gente que acompanhou com alguma atenção o processo eleitoral de 2022 formou a opinião de que a Justiça e a grande mídia torceram abertamente pela vitória de determinado candidato.

Por exemplo: às vésperas do segundo turno, um ministro do STF postou em uma rede social o sambinha “Já vai tarde!”, do grupo Mania de Ser.  
Será que ele estava se referindo debochadamente ao ex-presidente? 
Não posso afirmar. 
Mas, na percepção de muitos cidadãos comuns, estava sim.

Este foi apenas um exemplo bobo. [vale destacar que a postagem citada ocorreu às vésperas do segundo turno.]  Houve dezenas de outros episódios potencialmente mais graves que, na percepção de muitos cidadãos comuns, caracterizariam parcialidade na forma como os dois candidatos que chegaram ao segundo turno foram tratados pela Justiça e pela mídia – o que pode ter afetado o comportamento de muitos eleitores.

Basta lembrar que um documentário sofreu censura prévia, e que jornais e jornalistas foram proibidos de falar sobre determinados temas. A grande mídia se calou nesses episódios, quando não aplaudiu – como aliás aplaudiu qualquer decisão que favorecia determinado candidato e prejudicava outro. Foram decisões acertadas?  
Minha opinião não vem ao caso, porque este artigo não trata do que eu acho, mas da percepção de uma grande parcela da sociedade.

Para essa parcela da sociedade, impedir a exibição de um documentário até a data da eleição e proibir que jornalistas tratassem de determinados temas (ou mesmo que empregassem determinadas palavras, ou citassem determinados nomes, ou lembrassem determinados episódios fartamente documentados da nossa História recente) foram decisões erradas, porque quebraram a isonomia do pleito.

Pois bem, todo o preâmbulo acima foi porque eu queria escrever sobre o caso do submarino desaparecido, mas me pediram um artigo sobre o julgamento da ação que pode tornar Bolsonaro inelegível. Sob qual alegação? Ter convocado uma reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022.

E quebra de isonomia é, justamente, o cerne da denúncia que começou a ser julgada hoje: o julgamento da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) nº 0600814-85, que pede a inelegibilidade de Bolsonaro e de Walter Braga Netto, candidatos à presidência e à vice-presidência da República nas eleições de 2022.

Ora, na percepção de muitos cidadãos comuns, se houve quebra de isonomia no processo eleitoral, a reunião do ex-presidente com embaixadores não foi a única, nem foi o ex-presidente o principal beneficiado deses episódios.

    Na percepção de muitos cidadãos comuns, tornar um ex-presidente inelegível por ter convocado uma reunião com embaixadores é, digamos assim, um pouco exagerado

Na época, aliás, a reunião com os embaixadores foi tratada assim pela mídia:

https://www.facebook.com/watch/?v=794450811924413


Aproveito para transcrever abaixo o resumo da ação, tal como aparece no próprio site do TSE, para que o leitor avalie a gravidade do caso:

 “Do que trata a Aije 0600814-85?

Na Aije, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) pede que o TSE declare inelegíveis Bolsonaro e Braga Netto por prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, durante reunião do presidente Jair Bolsonaro com embaixadores estrangeiros, no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022. O PDT informa que o encontro de Bolsonaro com os embaixadores foi transmitido, ao vivo, pela TV Brasil e pelas redes sociais YouTube, Instagram e Facebook, que mantiveram o conteúdo na internet para posterior visualização.

O PDT também afirma que houve violação ao princípio da isonomia entre as eventuais candidaturas a presidente, configurando abuso do poder político o fato de a reunião ter ocorrido na residência oficial da Presidência da República e ter sido organizada por meio do aparato oficial do Palácio do Planalto e do Ministério das Relações Exteriores (MRE).


A defesa dos acusados argumenta que, no encontro com os embaixadores estrangeiros, foi praticado “ato de governo”, o que estaria fora do controle jurisdicional sob a ótica do “fim político”. De acordo com a defesa, não existe ato eleitoral a ser apurado, uma vez que, na reunião, não se tratou de eleições, não houve pedido de votos, não foi feito ataque a oponentes nem houve apresentação comparativa de candidaturas.

Os advogados afirmam que o evento constou de agenda oficial do então presidente da República, previamente informada ao público, e que a má-fé de determinados setores da imprensa levou a cobertura da reunião a tratar “uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia”. Segundo a defesa, o evento, na verdade, foi “um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”.

E a parcialidade continua, na percepção desses cidadãos.

Vejam só, na semana passada um youtuber (mais um) teve suas contas canceladas nas redes sociais. Eis que um jornalista da grande mídia escreve um artigo criticando a decisão da Justiça, com o seguinte argumento: “Jair Bolsonaro não é mais o presidente. As eleições passaram. Qual o sentido de calar [o youtuber]? (...) É hora de deixar a democracia funcionar com suas próprias pernas”.

A conclusão necessária é que, antes da eleição, justificava-se calar o youtuber; mas, agora que a eleição já passou, a Justiça pode deixar a democracia andar com suas próprias pernas...

Na percepção de muitos cidadãos comuns, tornar um ex-presidente inelegível por ter convocado uma reunião aberta com embaixadores é, digamos assim, um pouco exagerado. Na percepção do cidadão comum, essa reunião é apenas um pretexto para o cartão vermelho. Se não fosse este, encontrariam outro. Ou encontrarão, já que 15 outras ações correm no TSE contra o ex-presidente.

A metáfora futebolística parece adequada, porque, sempre na percepção de muitos cidadãos comuns, parece que o que está prevalecendo é a vontade de expulsar de qualquer maneira um jogador de campo – da mesma forma que, na campanha eleitoral, o que prevaleceu foi a vontade de derrotar de qualquer maneira o mesmo jogador.  
Na percepção de muitos cidadãos comuns, não é correto juízes terem lado, e não apenas no futebol.
 
Há motivo suficiente para a inelegibilidade?  
Na percepção de muitos cidadãos comuns, seguramente não há. 
Mas de nada adiantarão os argumentos da defesa, porque, também na percepção de muitos cidadãos comuns, é "jogo jogado": todo mundo já sabe qual será o resultado, e que a grande mídia irá aplaudir.

Porque, justamente, como eu dizia no início deste artigo, na percepção de muitos cidadãos a Justiça e a grande mídia têm isso em comum: já abriram mão há muito tempo de qualquer verniz de imparcialidade. Mas, também na percepção de muitos cidadãos comuns, quando se perde a credibilidade, perde-se também o respeito.

Não sou eu que estou dizendo: esta é apenas a percepção de muitos cidadãos comuns, que pode corresponder ou não à realidade. Mas, certa ou errada, esta percepção não deve ser ignorada, porque as consequências virão depois.
Veja Também:

    O Foro de São Paulo em suas próprias palavras

    O que Mr. Bean nos ensina sobre a liberdade de expressão

    Lembranças de junho de 2013


Luciano Trigo, colunista  - Gazeta do Povo 

 



terça-feira, 6 de outubro de 2020

O último a saber - Eliane Cantanhêde

O Estado de S. Paulo

Na guerra do ‘desequilibrado’ com o ‘despreparado’, Bolsonaro esquece Guedes

O presidente Jair Bolsonaro desautoriza Paulo Guedes num dia e no outro também e ontem o ministro foi o último a saber do encontro do chefe e do general Luiz Eduardo Ramos com seus dois maiores inimigos, o deputado Rodrigo Maia e o ministro Rogério Marinho. Soube por uma foto em que só aparecia Maia. À vontade, íntimo da “casa”, o fotógrafo foi Marinho.

Guedes acusa Maia de boicotar as privatizações, Maia chama Guedes de “desequilibrado” e Guedes ataca Marinho como “despreparado”, por admitir publicamente furar o teto de gastos. Logo, a coisa está animada na cúpula do governo, com o presidente no meio de uma guerra entre o “desequilibrado” e o “despreparado”. Ou melhor, no centro.

O tema da reunião, informou-se, foi de onde tirar dinheiro para o Renda Cidadã, mas como assim? O ministro da Economia, dono da chave do cofre, não estava presente, não foi convidado, nem sequer foi comunicado. E chiou. Como anda com os erros à flor da pele, envolto em dúvidas e convivendo dia a dia com a insegurança da própria equipe, dá para imaginar que a chiadeira não foi lá das mais calmas e elegantes.

O Planalto e Bolsonaro tiveram um trabalhão para convencê-lo de que se tratava de um cafezinho inocente e que o presidente mantém inalterados tanto a defesa do teto de gastos quanto a confiança e apreço pelo seu Posto Ipiranga. Se o próprio Guedes tem lá suas dúvidas, certamente o mercado e a opinião pública não ficam atrás. Quando se pergunta no governo qual a diferença entre Sérgio Moro e Paulo Guedes, a resposta é uníssona: Moro, segundo eles, com replique nas redes bolsonaristas, foi “desleal”, “mau caráter”, uma “surpresa” [ruim, desagradável, intolerável]. enquanto Guedes não é nada disso e é praticamente indemissível. [A demissão de Guedes se impõe por várias razões, uma delas - obviamente, : não a única - a necessidade da governabilidade e do Brasil ter uma política econômica do Poder Executivo
Por enquanto o que temos, desde o dia em que o ex-Posto Ipiranga manifestou pela primeira vez sua obsessão com a CPMF, é uma política errática que com a pandemia e o esforço do deputado Maia em atrapalhar a governabilidade do Brasil, piora a cada dia.]

Na verdade, o que ministros diziam de Moro às vésperas da queda dele é o que dizem agora de Guedes: um pilar do governo; o presidente sabe a importância que ele tem; aliás, gosta muito dele, pessoalmente; a chance de ele sair é zero... Era zero com Moro e é zero com Guedes, mas só até a próxima curva. Paulo Guedes é teimoso e duro na queda, não vai engolir desaforo calado, como Moro, e depois sair atirando. Ele está guerreando pela sua posição a céu aberto, botando a boca no trombone e se esforçando para manter unida o que resta da equipe econômica, depois da “debandada” que lhe tirou os secretários da Receita, do Tesouro, das Privatizações e da Desburocratização. 

Só conseguiu salvar o da Fazenda, que recebeu “cartão vermelho” do presidente, mas se manteve – com o compromisso de boca fechada. Esse compromisso Bolsonaro não vai arrancar de Guedes. Ficando ou saindo, ele vai continuar sendo Guedes, sem papas na língua. O script continua como previsto: depois de perder uma atrás da outra no governo e passar a ser sistematicamente criticado no mercado e na mídia por falar muito e entregar pouco, Guedes sobe e desce, sobe e desce, numa montanha-russa. Como na queda de Moro, ministros e assessores penduram-se no telefone para jurar que Guedes está firme feito uma rocha, mas assim mesmo começa a bolsa de apostas para lhe suceder, que nem vale citar aqui, para não botar mais fogo no circo.

Mais do que nomes, aliás, tem-se uma certeza: não será nenhum nome óbvio. E por que essa certeza? Basta ver como foram as escolhas para Educação, Saúde e Supremo: Carlos Alberto Decotelli, Milton Ribeiro, Eduardo Pazuello e Kassio Nunes. Nomes fora de qualquer lista, soprados ao ouvido sensível do presidente, que leva a sério quem toma tubaína com ele e está cada vez mais se lixando para a gritaria de robôs bolsonaristas, ou chororô de derrotados. E não se assustem com um sucessor de Guedes do Centrão, ou apadrinhado pelo grupo. Sinto informar. Guedes ainda não perdeu, mas o Centrão já venceu!

Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O dito pelo não dito - Merval Pereira

PSL deu cartão vermelho a Bolsonaro 

[sem o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos  e mais alguns deputados campeões de votos e que acompanharão o presidente o PSL fecha.]

O presidente Bolsonaro descobriu, nesse episódio da briga com a direção do PSL, que pode muito, mas não pode tudo. Deu uma de Jânio, ameaçou sair do partido pelo qual se elegeu, e deu com os burros n’água. Ficou o dito pelo não dito. Depois de receber um cartão vermelho simbólico do presidente do PSL, Luciano Bivar, teve que recuar. Em entrevista ao site O Antagonista, o presidente, apesar de reiterar as críticas, deixou escapar o centro das divergências: “Eu não quero esvaziar o partido. Quero que funcione. O PSL caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar. O que faço é uma reclamação do bem. O partido tem que funcionar, tem que ter a verba distribuída, buscar solucionar os problemas nos diretórios. Todo partido tem problema. O presidente, o tesoureiro, eles têm que solucionar isso.”

Bolsonaro tem razão quando diz que “o partido caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar”. Por sua causa, o PSL recebeu 10,8 milhões de votos para deputado federal a mais nessas eleições do que em 2014.  Na última disputa para a Câmara dos Deputados, sem Bolsonaro, o partido tivera apenas 808 mil votos.  Já em 2018, foram 11,6 milhões. Por isso, o partido terá nada menos que R$ 359 milhões em 2020, com os fundos Partidário e Eleitoral. Mais que o PT, (R$ 350 milhões) e o MDB (R$ 246 milhões).

A engorda do Fundo Partidário se deveu a Eduardo Bolsonaro, eleito com mais de 1,8 milhão de votos, o deputado federal mais votado da história do Brasil. Superou  Éneas (1.573.642 em 2002 pelo Prona) e Celso Russomanno (1.524.361 votos em 2014). A candidata de primeiro mandato Joice Hasselmann, também do PSL, foi outra campeã de votos em São Paulo, com mais de 1 milhão de votos, superando Tiririca, do PR, que teve 1.016.796 votos em 2014, mas caiu para cerca de 500 mil votos em 2018.

Além de aumentar as bancadas de seus partidos, ajudando a eleger vários deputados com a votação que excedeu o quociente eleitoral, esses puxadores de voto aumentam também o fundo partidário distribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anualmente aos partidos que participaram das eleições para a Câmara. A maior parte dos recursos - 95% - é distribuída entre os partidos de acordo com o número de votos obtidos na eleição para a Câmara dos Deputados (os 5% restantes são divididos igualmente). Cada voto obtido por uma legenda equivale, todo ano, a uma determinada quantia. Hoje, deve estar por volta de R$ 30,00. Isso quer dizer que só Eduardo Bolsonaro deu ao PSL cerca de R$ 54 milhões, além de ter elegido três outros deputados federais.

Os grandes puxadores de voto também recebem uma atenção especial dos partidos, assim como os grandes craques de qualquer esporte têm remuneração variável pela performance, ou executivos recebem bônus por produtividade.  O partido de Bolsonaro tem ainda as maiores votações de cinco estados. Hélio Negão, como é conhecido, obteve 480 votos quando disputou uma vaga de vereador no Rio. Em 2018, como Hélio Bolsonaro pelo PSL, os votos pularam para 345.234, tendo sido o deputado federal mais votado.  São filiados ao PSL os deputados mais votados de Goiás, Delegado Waldir, hoje líder do partido, do Mato Grosso, Nelson Barbudo; de Minas Gerais, Marcelo Alvaro Antonio, ministro do Turismo às voltas com denuncias de ter usado candidatas laranjas para desviar dinheiro para sua campanha.

Na chamada "janela partidária", um período de 30 dias corridos antes de o prazo de filiação se encerrar, seis meses antes do pleito, os parlamentares podem trocar de partido sem a ameaça de perda de mandato. Deputados podem mudar, fora da janela eleitoral, se expulsos sem justa causa ou se houver fusão de legendas.  Nem os votos, nem o tempo de televisão, que é contado pela bancada eleita em 2018, e não pela atual, migram para a nova legenda, a não ser que seja um novo partido criado. E mesmo assim é uma questão a ser decidida pelo Tribunal Eleitoral.

É essa a aventura que Bolsonaro teria que encarar, a um ano das eleições municipais, convencer deputados a trocar o certo pelo duvidoso, criar um novo partido do zero, para ter tempo de televisão e dinheiro para a campanha municipal. Por isso, recuou para a defesa e procura rearrumar o time, com o mesmo Luciano Bivar, que disse estar queimado, na presidência da legenda.

Merval Pereira, jornalista - Coluna em O Globo