Haverá quem indague onde esteve a oposição a Jair Bolsonaro este tempo todo
O ensaísta radicado na Califórnia Dustin Illingworth acerta em cheio
quando observa que melancolia é uma condição incompatível com o
coronavírus. A realidade crua do nosso planeta infectado, com cadáveres
que se empilham entre os vivos, não dá espaço ao que o britânico Robert
Burton, em seu clássico do século 17 sobre o tema, definiu como “um tipo
de loucura sem febre, tendo como companheiros o temor e a tristeza sem
nenhuma razão aparente”. Com a Covid-19 em marcha pelo mundo, a
melancolia foi deslocada por variantes menos românticas, como a
ansiedade, o pânico, a depressão. É possível que no futuro venhamos a
ter saudade do tempo em que foi possível sofrer só de melancolia, esse
fundamento da condição humana.
Por ora não dá. Pelo menos não no Brasil, que encerra uma semana
particularmente disfuncional, caótica e desconcertante. A hora, agora, é
de grita, mesmo que seja apenas para se sentir vivo e humano. A semana começou com o Brasil órfão, também, de Flávio Migliaccio. Em
terna carta aberta aos tantos que choraram o suicídio do ator de 85
anos, o filho Marcelo escreveu: “Meu pai fez o que fez à nossa revelia.
Pegou um táxi e foi para o sítio enquanto eu cuidava da minha mãe. Sem
nos avisar, sem se despedir. Ele sempre me dizia que não aguentava mais
viver num mundo como esse e sentir seu corpo deteriorar-se rápida e
irreversivelmente... Daqui para a frente só vai piorar, dizia...”. Mas
nem em seu mais agudo desassossego Flávio Migliaccio imaginaria que dois
dos policiais militares chamados à ocorrência fotografariam a cena e a
postariam em redes sociais. Ambos envergavam a bandeira do estado em
suas fardas. É a infâmia e covardia extremas destes tempos de apagão da
decência.
Como se permitir ser melancólico quando a realidade nacional trata a
Covid-19 com voracidade de caixa registradora? Arredondando, já são10
mil mortos e 150 mil casos confirmados, com o pico do contágio apontando
para mais calamidade à frente. A nação desassistida nunca teve o luxo
existencial de mergulhar no spleen literário, ela precisa fazer fila ao
relento para tentar receber os R$ 600 de ajuda emergencial enquanto Jair
Bolsonaro faz da presidência um reality show de programação livre —
pode ser tanto uma Marcha na Praça dos Três Poderes, com
lobistas/empresários no papel de extras, ou um churrasco de celebração à
insânia. Enquanto só no Rio de Janeiro mais de mil pessoas aguardavam a
vacância de um leito de UTI adequadamente equipado, Gabriell Neves
Franco, que até o mês passado era ainda subsecretário de Saúde do mesmo
estado, foi preso sob suspeita de integrar uma quadrilha de mercadores
de ventiladores mecânicos. Só muito mais adiante, quando for possível
estudar os desdobramentos desse período, se saberá a amplitude da rapina
ocorrida nos subterrâneos dos contratos emergenciais em nome do combate
à Covid-19.
Até aí nada de muito novo. Haverá quem indague onde esteve a oposição a
Jair Bolsonaro este tempo todo, como ela evaporou, por que não conseguiu
apresentar um mísero plano de contraponto a um governante tão
desarticulado, se foi verdade que existiu um ministro da Saúde invisível
de nome Nelson Teich. Na semana em que se comemora o 75º aniversário do
final da Segunda Guerra na Europa, olhar para o passado adquire valor
redobrado.
Ou então é fazer como Regina Duarte, cuja sombria e estarrecedora
entrevista concedida à CNN Brasil regada a sorrisos mecânicos mereceria
um estudo frase a frase. Somaram-se rasantes de despreparo, afagos à
ditadura e viagens ao mundo da fantasia.
Difícil saber se quem as pronunciava era a atriz no papel de secretária
executiva de Cultura, ou vice-versa, ou ainda, a fusão dessas duas
entidades. Algum hippie dos anos 60 talvez definisse a entrevista como
uma “transformação em metamorfose”. Já para a também veterana de palcos
Camila Amado, ainda incrédula com o que assistiu, o diagnóstico é
dolorido: “Acabou -se a imagem da ingênua usada e sem noção. Vi a pessoa
mais feia e de uma loucura assustadora, exposta e sem controle de
imagem, agora sim revelada pela televisão — ela, a Regina Duarte”,
escreveu em rede social. A repulsa de Camila é explicável — a ditadura
roubou-lhe o pai, Gilson Amado, e torturou sua mãe, a educadora
Henriette de Hollanda Amado.
Na visão de Regina Duarte, “tem que olhar pra frente, tem que amar o
país, parar de ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70,
80... Se eu ficar olhando pelo retrovisor, vou levar trombada, vou cair
no precipício ali na frente...”
Já caiu. O precipício é aqui. Para a respeitada revista britânica “Lancet”, que vai completar seu
bicentenário em 2023, Jair Bolsonaro representa a maior ameaça mundial à
Covid-19. [sic] Não é uma afirmação ligeira. A revista não analisa novelas,
trata de ciência.