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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Dos meios e dos fins - Nas entrelinhas


“No Estado de direito democrático, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não se discute, cumpre-se. Quando isso não acontece, é um mau agouro


O presidente Jair Bolsonaro vive num mundo só dele, que não é bem o país que governa. É difícil fechar um diagnóstico sobre as razões, mas é possível identificar os sintomas de que idealizou uma agenda, um governo e um Estado centralizador e agora se vê diante de uma realidade muito diferente daquela que imaginava. Primeiro, a agenda do país não é a sua, focada nos costumes e nos interesses imediatos de sua base eleitoral. [a agenda que o presidente Bolsonaro tentou seguir e não permitiram, é compatível com o desejo de quase 60.000.000 de eleitores.] Já lidava com dificuldades na economia quando a pandemia de coronavírus virou tudo de pernas para o ar.

Todas as suas prioridades foram alteradas. Ninguém sabe exatamente quando e como voltaremos à normalidade, mas sua insistência em antecipar esse processo de retomada da economia, num momento de aceleração da epidemia, vem se revelando um desastre do ponto de vista da saúde pública. É como aquele sujeito que erra de conceito: seus bons atributos, como iniciativa, coragem, combatividade, criatividade, força etc. só servem para aumentar o tamanho do desastre. A agenda do país é epidemia, epidemia e epidemia, pelo menos nas próximas duas semanas.

Também idealizou um governo no qual seu poder seria absoluto, como vértice do sistema. Está descobrindo que não é assim que funciona. Na democracia, há uma tensão permanente entre os que governam e a burocracia de carreira, responsável pela legitimidade dos meios empregados na ação político-administrativa. A ética das convicções, que motiva os políticos, não basta; ela é limitada pela máquina do governo, que foi organizada, treinada e instrumentalizada para observar as leis antes de agir, ou seja, zelar pela ética da responsabilidade. Bolsonaro não consegue lidar com isso. Em todas as frentes, tenta atropelar, substituir ou desmoralizar os que não aceitam decisões que são equivocadas tecnicamente e/ou contrariam a boa política e o interesse público.

Bolsonaro também tem dificuldade de lidar com os mecanismos de freios e contrapesos do Estado democrático de direito. Ontem, levou uma invertida do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que sustou a nomeação do novo-diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, por desvio de finalidade. Diante da decisão, revogou a nomeação para mantê-lo à frente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o que gerou uma situação de perda de objeto da ação do mandado de segurança acolhido por Moraes. Foi por essa razão que a Advocacia-geral da União desistiu de recorrer ao plenário do Supremo.
[O ato que nomeava André Mendonça e Alexandre Ramagem, foi suspenso na parte que cuidava da nomeação do Ramagem por ato do ministro do STF, Alexandre de Moraes.
Na sequência, o presidente Bolsonaro torna sem efeito, via decreto, a nomeação de Ramagem e com isso a ação no STF perde o objeto.
Pergunta que não quer calar: o que impede agora que Alexandre Ramagem seja nomeado, via Decreto, para o cargo de Diretor-Geral da PF?]

Mesmo assim, Bolsonaro não caiu na real de que a Polícia Federal (PF) é técnica e judiciária, em cujas investigações não pode interferir. Ontem, após a decisão do ministro do STF, mesmo assim, Bolsonaro disse que pretende recorrer da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e voltar a nomear Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal. “Eu quero o Ramagem lá. É uma ingerência, né? Vamos fazer tudo para o Ramagem. Se não for, vai chegar a hora dele, e vamos colocar outra pessoa”, declarou. Questionado sobre o posicionamento da AGU, disse que recorrer é um “dever do órgão”. E disparou: “Quem manda sou eu”. Se isso ocorrer, é muito provável que haja uma decisão unânime do STF contra a nomeação.

Recado claro
O que houve, ontem, foi um recado do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o sistema de freios e contrapesos da Constituição de 1988 está funcionando e que o Supremo ainda exerce o papel de Poder Moderador, em decorrência do fato de que cabe àquela Corte dar a palavra final em matéria constitucional. Como o STF é um poder desarmado, Bolsonaro provavelmente não se conforma muito com isso. Afinal, historicamente, esse papel foi exercido pelos militares, tanto na República Velha quanto na Segunda República. E seu governo tem mais generais do que qualquer outro no primeiro e no segundo escalões, mesmo comparado aos do regime militar. Quando diz que ainda vai nomear o Ramagem para o cargo de diretor-geral, Bolsonaro desnuda sua inconformidade, nos dois sentidos.


No Estado de direito democrático, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não se discute, cumpre-se. Quando isso não acontece, é um mau agouro. No governo Castello Branco, ou seja, após o golpe militar de 1964, o primeiro conflito sério com o Supremo ocorreu em 19 de abril de 1965. A Corte concedeu um pedido de habeas corpus impetrado pelo famoso jurista Sobral Pinto, católico e liberal, em favor do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, que estava preso na ilha de Fernando de Noronha, na costa daquele estado, desde a deposição do presidente João Goulart. Dias antes, o coronel Ferdinando de Carvalho, já prevendo a decisão, havia transferido o político pernambucano para a Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói (RJ).

O chefe do estado-maior do Exército, general Édson de Figueiredo, recusou-se a cumprir a decisão. O presidente do STF não teve outra alternativa a não ser mandar prendê-lo, o que provocou uma crise, somente debelada devido à intervenção pessoal de Castello, que chamou o magistrado e o general para uma conversa a três. Nesse meio tempo, um grupo de militares da chamada “linha-dura”, liderado pelo coronel Osneli Martinelli, sequestrou Arraes e levou-o para um quartel da Polícia do Exército. Foi preciso que Castello interviesse novamente, mandando soltá-lo. Arraes, que não era bobo, vendo que havia em marcha um golpe dentro do golpe, liderado pelo ministro da Guerra, o general Costa e Silva, tratou de pedir asilo na embaixada da Argélia. Era o começo de um processo que desaguou no Ato Institucional No. 5, em 13 de dezembro de 1968, mas isso isso já é outra história.


Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense


quinta-feira, 9 de abril de 2020

Uma homenagem póstuma - Nas entrelinhas


Bolsonaro enquadrou Mandetta e responsabiliza governadores e prefeitos pelo desemprego, embora tenham a dura tarefa de conter a epidemia na ponta”


Escrevo antes do pronunciamento de Bolsonaro de ontem à noite, em cadeia de tevê. Pela live que compartilhou no Twitter, a conversa que teve com Luiz Henrique Mandetta obrigou o ministro da Saúde a flexibilizar geograficamente a política de distanciamento social, levando em conta a progressão da doença nos estados. É um perigo, mas Mandetta hasteou a bandeira branca e bateu continência para o presidente da República. [qualquer cidadão quanto aceita um convite para se tornar ministro, tem ciência de que enquanto ministro é subordinado diretamente do Presidente da República e que permanece com total liberdade para deixar o cargo.]   Na entrevista coletiva que deu à tarde, deixou isso claro: “Quem comanda este time aqui é o presidente Jair Messias Bolsonaro”, disse. “Tivemos nossas dificuldades internas, isso é público, mas estamos prontos, cada um ciente de seu papel nesta história.”

Não sei qual o acordo que fizeram, mas essa é a ordem natural das coisas num sistema de poder no qual o vértice é o presidente da República. A propósito, Norberto Bobbio, após o assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, escreveu uma série de artigos sobre a crise italiana, reunidos numa coletânea publicada no Brasil, intitulada As ideologias e o poder em crise, em tradução de Marco Aurélio Nogueira. 
Destaco dois deles: 
a política não pode absolver o crime, no capítulo sobre Os fins e os meios, e;
 Quem governa?, em O mau governo.

A referência a Bobbio veio ao caso devido a uma passagem da entrevista do ministro Mandetta. Em certo momento, no chamamento que fez à união de todos contra a epidemia, disse que as autoridades médicas precisam da ajuda de todos, inclusive das milícias e dos traficantes. O ministro não é nenhum ingênuo, deve ter algum motivo para ter falado isso, mesmo sabendo que seria duramente criticado por essa referência ao crime organizado. A grande dúvida é se fez um apelo dramático por puro desespero, pois estamos num momento crucial do crescimento exponencial da epidemia, ou se realmente houve um pacto do governo Bolsonaro com as milícias e os traficantes.

Não seria a primeira que vez que isso aconteceria, com consequências desastrosas, porque favorece a expansão do crime organizado na sociedade e sua infiltração na política. Por outro lado, é muito fácil fazê-lo, pela via das relações perigosas nos sistemas de segurança pública e penitenciário. Ministro-chefe da Casa Civil, o general Braga Netto, ex-interventor no Rio de Janeiro, conhece bem essas conexões. 
Qual é a lógica perversa por trás desse raciocínio? 

Todos sabemos que a epidemia ainda não chegou ao povão, está na classe média alta, e só agora registra os primeiros casos de mortes nas favelas e periferias das grandes cidades e regiões metropolitanas conurbadas, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Manaus. Na prática, isso significa toque de recolher e dura punição nas favelas e nas periferias, numa hora em que o presidente da República pressiona pela flexibilização da política de isolamento social.

Quem governa?
Governos monolíticos nas democracias não existem, ainda mais num sistema federativo e de equilíbrio entre os poderes. Bolsonaro enquadrou Mandetta e responsabiliza governadores e prefeitos pelo distanciamento social e o desemprego. Mas sabe também que os governadores e prefeitos, que têm a dura tarefa de conter a epidemia na ponta, contam com o apoio do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) para agir com autonomia, na esfera de suas competências. Por mais que queira, não existe correlação de forças para Bolsonaro intervir nos estados. É assim que funciona na democracia.


O Estado brasileiro é ampliado, cada ministério é um subgoverno que se relaciona com os demais poderes e esferas de poder com relativa autonomia, além de terem imbricações com agências privadas e grandes setores empresariais. Mas é daí que veio a reação para garantir o funcionamento do sistema de saúde, com produção de suprimentos de proteção individual, equipamentos e aparelhos de saúde para ampliar a capacidade de absorção de pacientes pelos hospitais. Existe um grande business na área da saúde, cujas políticas públicas foram capturadas por grande fornecedores, muitos dos quais importadores, e também algumas máfias, que desviaram recursos ao longo dos anos. Agora, chegou a hora de verdade: os profissionais de saúde estão no comando, o governo está sendo obrigado a inventar um novo orçamento da Saúde e a recriar a indústria do setor.

Nesse aspecto, foi patética a constatação de que os hospitais federais do Rio de Janeiro não têm profissionais para atuar contra a epidemia, assim como os hospitais universitários. O governo federal é responsável por 5% da capacidade hospitalar do país, porém, deveria entrar com mais força, principalmente na montagem de hospitais de campanha e na contratação de profissionais para atuar junto às comunidades de periferia e regiões remotas da Amazônia e nos sertões do Nordeste, resgatando o Programa Mais Médicos.

Finalmente, uma homenagem póstuma ao sanitarista Sérgio Arouca, grande idealizador do SUS, que liderou milhares de profissionais de saúde que hoje estão na linha de frente do combate à epidemia. Lembro-me de duas conversas com ele: na primeira, me disse que a emergência era o ponto mais fraco do sistema, subestimada pela cultura dos sanitaristas; na segunda, lamentou não ter conseguido levar adiante seu programa de agentes comunitários de saúde no Rio de Janeiro, sem os quais seria impossível erradicar a dengue e conter epidemias mais graves nas comunidades pobres.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense