Massacre em Paris expõe o fracasso das superpotências no combate ao terror, obriga França e seus aliados a suprimir liberdades individuais e mostra que esta será uma guerra difícil de ser vencida
Poucas horas depois dos atentados que mataram 129 pessoas em Paris, uma mulher parou diante da boate Bataclan, um dos palcos das atrocidades, retirou um bloco de anotações da bolsa e leu em voz alta um poema do inglês John Donne: “Quando um homem morre eu sou atingido, porque pertenço à humanidade. Jamais me pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”. Seria difícil encontrar versos mais apropriados. O massacre perpetrado por terroristas do Estado Islâmico não atingiu apenas o coração da França. Ele lacerou toda a civilização. Por mais que a capital francesa tenha se tornado o alvo preferencial de um crescente número de extremistas, é a humanidade que se quer atingir.
CAÇADA
Atirador se posiciona atrás de igreja na busca por terroristas
Atirador se posiciona atrás de igreja na busca por terroristas
A sociedade livre enfrentará, daqui por diante, uma longa, difícil e perigosa jornada. Na quinta-feira 19, os deputados franceses aprovaram, a pedido do presidente François Hollande, a ampliação do estado de emergência no país pelo prazo de três meses. A medida ainda precisa passar pelo Senado. Na prática, isso pode implicar em uma série de reduções de liberdades individuais, com o fechamento de pontos turísticos, a imposição de toques de recolher e a restrição à circulação de veículos por determinadas áreas. O estado de emergência não é previsto na Constituição francesa, mas foi criado por uma lei aprovada em 1955, durante a luta dos argelinos pela independência. O ponto mais polêmico é que ela permite a realização de prisões administrativas e buscas sem mandado judicial. Até a quarta-feira, ao menos 130 operações desse tipo haviam sido feitas.
Ao mesmo tempo, Hollande propõe mudanças na Constituição para “combater melhor o terrorismo”, incluindo medidas como o banimento de cidadãos franceses que retornam ao país, caso representem algum tipo de risco, e a inclusão do estado de emergência no texto. A imprensa francesa também especula que Hollande poderia alterar os artigos que tratam da cessão de “poderes excepcionais” ao presidente e do “estado de sítio”, em que parte das atribuições da polícia é transferida aos militares. O cenário lembra muito os eventos que se seguiram aos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, quando o Congresso americano aprovou, a pedido do ex-presidente George W. Bush, leis que permitiram a espionagem de cidadãos a fim de combater potenciais ameaças terroristas. Essas medidas culminariam, mais de uma década depois, no escândalo de grampos da Agência Nacional de Segurança (NSA), denunciados pelo analista Edward Snowden, hoje asilado na Rússia.
Enquanto as consequências políticas e sociais do terror ainda eram avaliadas, as polícias e as Forças Armadas europeias realizavam operações para tentar capturar suspeitos de ligações com os atentados de Paris. Na terça-feira 17, na Alemanha, a polícia chegou a prender sete pessoas. Os detidos, seis homens e uma mulher, estavam em Alsdorf, uma pequena localidade perto da cidade de Aachen, próxima às fronteiras com a Holanda e a Bélgica. Todos acabaram liberados horas depois. Na quarta-feira, uma operação da polícia francesa com mais de 100 agentes atravessou a madrugada em Seine-Saint-Denis, subúrbio de Paris. Ao invadirem o prédio onde se escondia o belga Abdelhamid Abaaoud, de 28 anos, apontado como mentor dos ataques, os policiais foram surpreendidos por uma mulher-bomba que detonou os explosivos amarrados ao corpo. No tiroteio que se seguiu, Abaaoud foi morto. A identificação ocorreu apenas no dia seguinte, após análises de impressões digitais. Outras sete pessoas, acabaram detidas.
Ao mesmo tempo, a França intensificou suas ações contra bases do Estado Islâmico na Síria, bombardeando, com ajuda dos caças Rafale, mais de 30 alvos apenas na noite de terça-feira. No dia seguinte, o porta-aviões nuclear Charles de Gaulle partiu em direção ao Mediterrâneo Oriental para dar apoio às operações na Síria. Com outros 20 caças Rafale a bordo, ele triplicará a capacidade de ação francesa na região.
PÓS BIN LADEN
Para entender o real significado do desafio
que se coloca diante do mundo civilizado é preciso conhecer o inimigo
que se quer derrotar. O Estado Islâmico é o oponente mais temerário que
França, Estados Unidos e outras potências ocidentais jamais enfrentaram.
O Isis nasceu em 1999 e, desde então,
nutriu-se das guerras no Iraque e na Síria. A instabilidade política
nesses dois países, estimulada pelas investidas dos Estados Unidos,
serviu de combustível para o avanço dos novos terroristas. “A invasão
americana do Iraque desorganizou toda a região e permitiu a ascensão do
Estado Islâmico”, afirmou na semana passada o senador democrata Bernie
Sanders, pré-candidato à presidência dos Estados Unidos. “O Isis se
beneficiou da fadiga da guerra na Síria, do desespero dos combatentes e
dos vácuos de poder especialmente no norte do país”, disse à ISTOÉ
Christa Salamanda, especialista em assuntos da Síria da Universidade de
Nova York.
Quando os Estados Unidos mataram Osama Bin Laden, em 2011, o presidente
americano promoveu um espetáculo midiático. Ele foi a público anunciar o
fim da caçada ao líder da Al-Qaeda. “Daqui por diante, o mundo será um
lugar mais seguro”, disse um jubiloso Obama. A declaração revelou-se uma
farsa. “Em termos práticos, a morte de Bin Laden teve pequeno impacto
sobre os grupos jihadistas do tipo Al-Qaeda, cuja maior expansão ocorreu
depois”, escreveu o correspondente de guerra Patrick Cockburn, no livro
“A Origem do Estado Islâmico”. O fim do terrorista que orquestrou os
atentados de 11 de setembro de 2001 não só não teve qualquer efeito no
combate ao terror como abriu espaço para a ascensão do Isis. Após a
morte de Bin Laden, o presidente cometeria outro erro estratégico, ao
afrouxar o cerco aos extremistas e demonstrar certo desinteresse pela
facção que ganhava corpo. “Os Estados Unidos baixaram as armas e, desde
então, não demonstraram qualquer esforço para destruir o Estado
Islâmico”, afirma William Harris, professor de política na Universidade
de Princeton e da Universidade do Oriente Médio, em Ankara, na Turquia.
CONEXÃO DIGITAL
O Estado Islâmico expandiu-se também porque
é filho da era digital. Os terroristas se apoiaram nas redes sociais
para divulgar crueldades como decapitações e afogamentos e passaram a
recrutar fanáticos por meio de páginas como o Facebook. Daí surge a
dificuldade em combater um inimigo que pode estar hoje em qualquer lugar
– na periferia de Paris, num café em Nova York, num trem em Madri. “O
Estado Islâmico representa um novo paradigma do terrorismo
internacional, principalmente pelo uso sistemático e estratégico do
cyberpower”, diz Sidney Leite, especialista em terrorismo da
Universidade de Leiden, na Alemanha. “Basta uma pessoa e um smartphone
carregado para fazer a guerra”, diz José Luiz Niemeyer, coordenador do
curso de Relações Internacionais do Ibmec-RJ. “ Um terrorista pode
organizar um atentado sem sair de um quarto de hotel.”
Para formar seu batalhão, os membros do
Isis adotam estratégias eficazes de sedução. No primeiro estágio são
localizados os alvos, jovens que demonstrem publicamente descrença na
democracia ou que adotem um discurso de que a sociedade caminha para a
perda dos valores. Na segunda etapa, em páginas e sites populares, os
membros iniciam conversas de forma aberta com esses alvos, sem revelar a
verdadeira intenção ou sequer que pertencem ao Estado Islâmico. A
abordagem se dá em questões voltadas para os conceitos de liberdade,
democracia e justiça. Aos poucos, o contato migra para áreas mais
particulares do mundo virtual: uma conversa restrita via Facebook ou
mensagens diretas no twitter. Quando se estabelece uma relação de
confiança, a comunicação se dá via whatsapp ou snapchat, aplicativos
preferidos pelos adolescentes. A partir daí começa o trabalho de
doutrinamento. O Estado Islâmico se apresenta como o caminho para
reencontrar a identidade perdida e descobrir os verdadeiros valores
espirituais. Como combater um inimigo tão atento à angústia dos jovens?
Como nenhum outro grupo terrorista – e como
a Al Qaeda jamais sonhou realizar – o Estado Islâmico levou a
espetacularização de suas ações ao grau máximo de eficiência. A produção
de vídeos macabros envolve aparelhos modernos, inúmeras câmeras, edição
e qualidade de imagem que se assemelham à estrutura de trabalho das
grandes empresas televisivas. Enquanto os pronunciamentos do saudita
Bin Laden eram feitos via webcam e transmitidos de uma caverna por um
surrado laptop, os membros do Isis usam os mais avançados aplicativos de
divulgação. “Os vídeos do Estado Islâmico se tornaram poderosas armas
de publicidade”, diz o professor Niemeyer, que aponta outra referência
histórica para efeitos de comparação. “As estratégias narrativas de
vídeo remontam aos anos 30 do século passado, em especial à famosa
cineasta nazista Leni Riefenstahl e ao próprio Joseph Goebbels, ministro
da propaganda de Hitler.”
XENOFOBIA
Os atentados em Paris mostraram que o mundo
poderá mergulhar em um período de sombras. A intolerância é o mal que
ameaça as conquistas que surgiram principalmente depois da integração
europeia. Todos os oito terroristas identificados eram cidadãos
europeus. Sabe-se que o passaporte sírio achado junto ao cadáver de um
nono extremista chegou a Paris traçando a rota dos refugiados, mas
autoridades suspeitam que o documento seja falso. Mesmo assim, Polônia e
Letônia começaram a impor barreiras para refugiados, enquanto o
primeiro-ministro eslovaco declarou que a imigração traz enormes riscos à
segurança. Mesmo Bélgica, França e Itália estão limitando o acesso de
estrangeiros, e no Reino Unido mais de 400 mil pessoas assinaram uma
petição pedindo o fechamento de fronteiras. “Provavelmente não será
permitido que imigrantes entrem na União Europeia da forma caótica como
vem ocorrendo”, afirma Demetrios Papademetriou, presidente do Instituto
de Políticas de Imigração no continente. “As conversas agora são todas
sobre o endurecimento dos controles de entradas.”
Se a crise dos refugiados está no foco das
atenções, os ataques podem ter consequências maiores para a comunidade
árabe que vive na Europa. Ela está mais exposta à falta crônica de
trabalho, à criminalidade e à radicalização religiosa. “O maior desafio é
que as agências de segurança consigam atuar de uma forma seletiva e
regrada, em vez de arbitrária”, diz o cientista político Stathis
Kalyvas, professor da Universidade de Yale. “Caso contrário, o problema
poderá ser multiplicado pela violência e discriminação.” O Estado
Islâmico não vai destruir a Europa, como anseiam os fanáticos, mas a
França e seus aliados precisam ser firmes no combate ao mais perverso
inimigo que o Ocidente jamais enfrentou.
Fonte: Com reportagem de Camila Brandalise, Ludmilla Amaral, Raul Montenegro
Fotos: Iian Langsdon/EFE/EPA, Peter Dejong/AP Photo, Laurent Cipriani/AP Photo, Peter Dejong/AP Photo; Michel Spingler/AP Photo, DANIEL PSENNY/LE MONDE/AFP PHOTO; Thibault Camus/AP Photo; Christophe Ena/AP Photo; Thibault Camus/AP Photo, David Ramos/Getty Images; Pool/Reuters; KENZO TRIBOUILLARD/AFP PHOTO
Nenhum comentário:
Postar um comentário