Circulou nas redes sociais um texto atribuído ao milionário Beto
Sicupira no qual ele pedia aos empresários que não se discutisse mais a crise,
nem se falasse de Dilma e Cunha. É preciso tocar os negócios, Dilma e Cunha não
trabalham na empresa. Ouvido pela imprensa, Sucupira não confirmou nem
desmentiu seu texto. Escrito por um milionário ou alguém mais pobre, o conselho
para ignorar esta camada da realidade lembrou-me o caso dos nativos da
Tasmânia, contado por John Gray em seu livro “Cachorros de palha”.
Os nativos da Tasmânia viviam mais simplesmente que os aborígenes da
Austrália, dos quais se isolaram com a elevação do nível do mar cerca de 10 mil
anos atrás.
Perderam a habilidade de tecer, pescar e fazer fogo. E quando os navios
de colonos europeus chegaram, em 1772, incapazes de processar uma imagem para a
qual nada os havia preparado, voltaram às suas vidas, como se nada tivesse
acontecido.
Eles foram dizimados. Sua pele era vendida, e as mulheres eram obrigadas
a carregar a cabeça cortada de seus maridos amarradas em seu pescoço. “Quando morreu o último macho tasmaniano, a sepultura foi aberta pelo
Dr. George Stockell, um membro da Sociedade Real da Tasmânia, que fez uma bolsa
para fumo com sua pele”, conta John Gray.
Não corremos riscos
tão dramáticos, se optarmos pelo distanciamento. No entanto,
corremos risco. Nesse início de crise, o desemprego cresceu, três milhões de
famílias foram ejetadas da classe média, e cresce a violência nas cidades.
Numa única semana ficamos sabendo que quatro estrelas do PT movimentaram
R$ 300 milhões em suas contas, que o líder proletário sozinho recebeu uma
fortuna em suas viagens, nas quais exigia um menu de travesseiros.Estamos sendo investigados em, pelo menos três países. No Peru, José
Dirceu teria comprado autoridades; em Portugal o PT teria levado € 50 milhões
em propinas, e no Paraguai realizamos uma obra superfaturada ligada à Usina de
Itaipu. Entregue à máfia político-burocrática, o Brasil não vai apenas ser
sugado até o último vintém. O país pode se tornar uma imensa plataforma para
assaltos no exterior. Sobreviveremos como as favelas dominadas pelo tráfico ou pela milícia.
Deixaremos de ser conhecidos pelo futebol e o carnaval. A picaretagem será
nossa modalidade, na olimpíada universal do crime.
Quem trabalha muito tem pouco tempo para se informar ou protestar. Nesse
aspecto, o texto atribuído ao milionário até que faz sentido: é preciso
continuar trabalhando, apesar de Dilma e Cunha. No entanto, vivemos uma situação de emergência. Saquearam o país,
arruinaram a Petrobras, vendem medidas provisórias no Planalto, vendem-se
jabutis para medidas provisórias na Câmara, venderão, se puderem, a última
árvore de nossa floresta, a última gota de nossas nascentes.
Não importa para eles que o país entre em parafuso. Muitos têm contas na
Suíça, outros, como um deputado do PT, ganham apartamentos em Miami. Para as grandes fortunas, esse vendaval é apenas uma brisa. No entanto,
é devastador para os todos que vivem, modestamente, de seu trabalho. Como deixar Dilma de lado, depois de utilizar o dinheiro público como
quis, pedalando em nome dos pobres e canalizando o dinheiro para as grandes
empresas? Como esquecer o maior escândalo da História e não relacioná-lo à
milionária campanha do PT? Como acordar todas as manhãs sabendo que a Câmara é
uma piscina cheia de ratos, cujo presidente é um gângster com contas na Suíça?
Assim como as pessoas, os países precisam de vez em quando se olhar no
espelho. No momento, o Brasil não consegue fazer esse gesto. Quando há perigo
de vida, como nas favelas dominadas por tráfico ou milícia, é prudente seguir
trabalhando, conversar o mínimo possível, esperar que a mudança venha de cima. Francamente, não há grande perigo em resistir à quadrilha política que
domina o Brasil. Uma burocrata saiu espetando manifestantes com uma agulha, um
professor ameaça levar os reacionários ao paredão e fuzilá-los com uma
espingarda. Claro, sempre podem nos chamar de reacionários, vendidos, elite
branca, fascistas. Quando criança, a gente simplesmente cruzava os dedos e
isolava: tudo o que você falar está me ajudando. Uma agulha pelas costas, uma
espingarda velha não são forte elementos de dissuasão. O obstáculo real está
nas dúvidas sobre o futuro? O que virá depois? Se aparecer uma simples fresta
no horizonte, a multidão passará por ela.
Os nativos da Tasmânia não tinham informações, sequer conseguiam
processá-las. Nós sabemos de tudo, consumimos notícias instantâneas. De uma
certa maneira, nossa pele está em jogo. Seria um prazer deixar de pensar em Dilma e Cunha, concentrar no árduo
trabalho cotidiano. Não enquanto estiverem lá, dando as cartas. Ainda que
falsas, são as cartas do poder.
Fonte: Fernando
Gabeira - Publicado no Globo
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