Uma tese polêmica circula pela internet: não há déficit na
Previdência Social. A ideia tem como principal base um estudo da
Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip),
que sustenta que as contas do Orçamento da Seguridade Social — que
engloba os gastos com aposentadorias, pensões, assistência social e
saúde — poderiam estar no azul, caso fossem calculadas de forma
diferente. Segundo a entidade, o governo deixa de contabilizar receitas e
acrescenta despesas a esse orçamento, o que provoca o rombo. A
metodologia é contestada pela maioria dos especialistas em contas
públicas e pela equipe econômica.
Considerando o dinheiro que entra, a principal crítica da Anfip é em
relação a um mecanismo chamado Desvinculação das Receitas da União
(DRU), criado em 1994 para dar mais flexibilidade à forma como o governo
pode gastar os recursos arrecadados com impostos e contribuições. Isso
porque a Constituição prevê que alguns desses tributos são carimbados —
ou seja, devem ser destinados para determinadas áreas. A DRU, criada por
emenda constitucional, alterou essas regras, permitindo que o governo
mexesse livremente em 20% dessas receitas — no ano passado, esse
percentual passou a ser de 30%. As contribuições ao INSS não são
afetadas pela DRU.
Mas, para a Anfip, a regra tira dinheiro da Seguridade. Um vídeo,
distribuído pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais (Sindifisco),
resume o estudo e destaca que o Orçamento da Seguridade Social perdeu R$
66 bilhões em 2015 por causa da DRU. A legenda diz que “não há rombo na
Previdência, e sim um desvínculo anual”, com uso de impostos para
outros fins. Nas contas da entidade, haveria superávit de R$ 11,2
bilhões naquele ano, valor suficiente para pagar as despesas da
Previdência Social. A Anfip também alega que as desonerações fiscais
tiraram dinheiro da seguridade ao longo dos anos.
Os dados do governo estão de acordo com os dos auditores fiscais, mas
a equipe econômica nega que seja esse o motivo para o rombo da
Previdência. Também em vídeo, criado para rebater a tese de que não há
déficit no sistema, o Ministério da Fazenda confirma que as
desvinculações chegaram a R$ 61 bilhões em 2015 — número semelhante ao
usado pela Anfip —, mas que a Seguridade Social continuaria no vermelho
em R$ 106 bilhões naquele ano, mesmo que os recursos não fossem
desvinculados. Descontando as receitas usadas na DRU, o déficit
calculado pela Fazenda é de R$ 166,5 bilhões.
A diferença entre os resultados é porque a associação, além de
contabilizar volume diferente de receitas, desconsidera algumas despesas
em sua metodologia. A principal delas são os gastos com aposentados e
pensionistas do serviço público. Na avaliação da Anfip, esses gastos não
fazem parte do Orçamento da Seguridade Social, pois são regidos por
outro capítulo da Constituição Federal, que detalha o funcionamento dos
Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS).
Criador da DRU, o economista Raul Velloso explica que, na prática, a
DRU não faz mais tanta diferença na conta, por causa do déficit na
Seguridade, que se intensificou em 2016. Ele conta que a ideia surgiu
para flexibilizar o dinheiro dos impostos criados em 1988, muitos com
destinação exclusiva. Mas a estratégia só tem sentido quando sobra
dinheiro da Seguridade Social — que, então, pode ser movimentado para
dar conta de outros gastos.
Como os gastos com Previdência são obrigatórios, o governo até
desvincula esse dinheiro, mas tem de devolver o que tirou e complementar
para pagar os benefícios. Esse déficit é bancado pelo Tesouro Nacional.
— A DRU hoje é inócua. Minha invenção foi superada pelos fatos. Ela não consegue tirar mais dinheiro, o que adianta?
Para o presidente da Anfip, o mecanismo é prejudicial ao sistema previdenciário.
— A Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) é destinada
exclusivamente para o social. A Cofins é destinada para seguridade
social. Como o governo inventa uma DRU que permite retirar 30% dessas
receitas, quando o sistema é solidário, e as receitas são de destinação
exclusiva? — critica Vilson Romero, presidente da Anfip.
Ele contesta, ainda, a inclusão dos gastos com servidores na conta da Seguridade.
— É uma pedalada na Constituição — resume.
Para o governo, é correto contabilizar os gastos com servidores nessa parte do Orçamento.
— Hoje, o déficit (da Previdência) dos servidores públicos é de R$ 77
bilhões. Eles falam que não é um gasto com seguridade social porque não
está no capítulo da seguridade social. Da mesma forma que gasto com
professor é de educação, gasto com aposentado, do setor público ou
privado, tem que ser Previdência — diz Arnaldo Lima, assessor especial
do Ministério do Planejamento.
Benedito Passos, diretor do Núcleo Atuarial de Previdência, concorda com a visão da Anfip.
— A seguridade social poderia ter mais de R$ 1 trilhão de recursos
hoje se nos últimos 12 anos não estivéssemos fazendo as transferências —
avalia.
A opinião de Passos, porém, não encontra eco entre outros analistas. A
maioria dos economistas especializados em contas públicas destaca que a
tese do superávit não se sustenta, principalmente porque, no fim das
contas, o dinheiro é um só. — A Previdência Social, e ainda mais a dos servidores, não é uma ilha
da fantasia descolada do resto dos Poderes e recursos públicos. Ainda
mais porque o seu déficit será sempre pago pelo próprio governo, logo,
fica capenga fazer uma análise em que se considera apenas uma parte dos
gastos — destaca José Roberto Afonso, economista do Ibre/FGV e professor
do IDP.
O economista da FGV Samuel Pessôa destaca que, independentemente da
forma de se contabilizar, há déficit, não só no sistema previdenciário,
como na Seguridade Social:
— (A tese da Anfip) não pode ser considerada. Há déficit a partir de
2016 (mesmo sem a DRU) e ele será crescente independentemente da forma
de contabilizar e de se devolver ou não as desonerações.
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