Estava em viagem, acompanhando com menos denodo os acontecimentos no
Brasil e, por isso, apenas ontem tomei conhecimento do fato que dá
motivo a estas considerações.
Uma coisa é a crescente indignação com nossa também crescente
insegurança; outra é a vingança mediante aplicação de uma suposta
justiça por meios próprios. Uma coisa é o legítimo direito de
promovermos a defesa de nossos bens e da nossa vida mediante o uso de
instrumentos de persuasão; outra é o uso desproporcional desses meios,
mormente quando aplicados contra um indivíduo em estado de idiotia,
incapaz de se defender.
Houve um tempo, na história da humanidade, em que a “justiça” se
fazia mais ou menos assim. Por repetitivo que seja, sempre é bom lembrar
que já no século XVIII a.C., o rei Hamurabi, unificador do império
paleobabilônico, editou o código que leva seu nome e, nele, estabeleceu a
lei de talião (resumidamente: “olho por olho, dente por dente”) para
evitar reparações abusivas, que excedessem o dano causado. Assomos de
vingança pessoal, linchamentos, e atos como o do tatuador, representam,
pois, um recuo de 3800 anos na história da humanidade. O processo
civilizador construiu outras referências, outros padrões de conduta e
meios formais para realizar a justiça e buscar a sanidade nas relações
sociais. Ou se adere a esses padrões que levam em conta a dignidade da
pessoa humana, apesar das dificuldades e dos impulsos primitivos que
coabitam em nós, ou retornamos à barbárie, à lei do mais forte. E isso é
uma imprudência porque sempre haverá alguém mais forte do que nós.
É verdade que também regredimos na aplicação da justiça como a
concebemos. Ela é lenta, ideologizada, pouco eficiente; o ladrão entra
por uma porta da delegacia e sai pela outra. É verdade que essa sensação
de impotência e quase inutilidade das instituições dá causa àquela
indignação a que me referi acima. Mas sequer a soma de todas essas
motivações autoriza a violência como a que foi exercida contra o rapaz
por alguém que se fez juiz e agressor covarde de um indivíduo
deficiente, e debochado carrasco de seu “réu” privado. Cometeu, assim,
um crime muito mais grave do que o delito que o motivou àquela reação
ferina. A conduta causa indignação. Mas essa indignação não autoriza
quem quer que seja a tatuar-lhe na testa “carrasco e torturador”. Certo?
Devemos ser promotores da humanização da humanidade. E não o
contrário disso. Então, assim como saúdo a solidária mobilização para
restaurar o rosto do pressuposto ladrão vacilão – que rapidamente
levantou milhares de reais – lamento a falta de solidariedade nacional
em relação a tantas outras vítimas da violência e da criminalidade que
não aparecem na imprensa, não são pauta nas redes sociais e não inspiram
ações restauradoras de natureza pública ou privada.
Fonte: Percival Puggina
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