Aproveitando-se desse círculo vicioso, o setor privado articula hoje suas forças políticas para dar novo salto e ganhar autorização para oferecer os “planos populares”
Há muitas formas de trair a Constituição. Uma delas é
forçar o texto a dizer algo diverso do que diz. Juristas às vezes
recorrem a interpretações excêntricas para dar verniz técnico a posições
avessas ao texto. A segurança pública e o combate à impunidade, por
exemplo, têm sido há muito defendidos como fins soberanos que, em nome
de um Brasil melhor, justificam a supressão de liberdades civis. Outra
forma de infidelidade constitucional é presumir que a norma mira futuro
distante. Enquanto não chegamos lá, aplicam-se no presente padrões
normativos esvaziados, sem explicar como defini-los ou quando aquele
futuro começa. O direito à moradia está nessa fila de espera, entre
tantos outros.
A traição mais refinada, contudo, não vem da arte do jurista, mas do engenho contábil. Essa técnica abraça a retórica generosa do texto constitucional, mas inviabiliza sua realização por meio de ardil orçamentário, que esconde conflitos distributivos e beneficia o topo da pirâmide. Em política social, o diabo mora nas finanças, não só na sutileza jurídica. O direito à saúde sempre foi vítima dessa manobra. O movimento sanitarista obteve retumbante conquista na Constituição de 1988 e emplacou política pública de saúde gratuita e universal por meio de um sistema único. O SUS tornou-se a espinha dorsal do projeto igualitário brasileiro. Entre um modelo de direitos sociais voltados para pobres, com o estigma e a precariedade embutidos, e um modelo de direitos sociais universais, a ser usufruído por todos, o SUS adotou o segundo. Nesse sistema, saúde não é bem de consumo para quem pode pagar, cuja qualidade depende de quanto se paga, mas direito de qualquer cidadão e dever do Estado. Consagrou-se uma concepção arrojada de justiça social.
A Constituição permitiu que a iniciativa privada prestasse assistência à saúde de forma complementar ao SUS (Art. 199). A partir daí, a política estatal optou por oferecer, de um lado, vultosos incentivos ao setor privado de hospitais e planos de saúde por meio de renúncia fiscal; de outro, por submeter o SUS a crônico subfinanciamento, que impede maior efetividade ao direito à saúde. O Estado retirou recursos do SUS para subsidiar o mercado, estabeleceu uma perversa relação entre o público e o privado e construiu eficiente engrenagem de concentração de renda. Boicotou a inspiração igualitária do SUS e se fez “Robin Hood ao contrário”, como se costuma dizer.
Hoje, 75% da população brasileira depende exclusivamente do SUS, que recebe pouco mais de 40% do que se gasta com saúde no país; os outros 25% da população se beneficia do “bolsa saúde” para contratar um plano privado. Deixa-se de arrecadar aproximadamente R$ 30 bilhões, o que ao mesmo tempo ajuda a corroer o SUS e a viabilizar amplo mercado.
Aproveitando-se
desse círculo vicioso, o setor privado articula hoje suas forças
políticas para dar novo salto e ganhar autorização para oferecer os
“planos populares”. Nas palavras de Ricardo Barros, ministro da Saúde
até o mês passado, entre “andar a pé” (como se referiu ao SUS) e “andar
de Mercedes” (os planos privados), os cidadãos deveriam ter a opção
intermediária de pagar por um plano barato em troca de serviços baratos
(uma espécie de fusquinha, para adaptar a infeliz metáfora).
Esse movimento não é surpreendente e tem coerência com a trajetória de desnaturação disfarçada do SUS. É sintomático que o próprio ministro não se expresse no idioma do direito universal à saúde. A conversão definitiva do SUS em política para pobre, e da saúde em bem de consumo, não é mero rearranjo econômico-financeiro, mas mudança de código moral. Precisamos de clareza quanto ao caráter e à magnitude da mudança: sem um sistema universal de saúde, a proposta liberal de igualdade de oportunidades, da qual depende a liberdade, torna-se uma fraude. Virar essa chave representa o fim de um projeto constitucional.
A traição mais refinada, contudo, não vem da arte do jurista, mas do engenho contábil. Essa técnica abraça a retórica generosa do texto constitucional, mas inviabiliza sua realização por meio de ardil orçamentário, que esconde conflitos distributivos e beneficia o topo da pirâmide. Em política social, o diabo mora nas finanças, não só na sutileza jurídica. O direito à saúde sempre foi vítima dessa manobra. O movimento sanitarista obteve retumbante conquista na Constituição de 1988 e emplacou política pública de saúde gratuita e universal por meio de um sistema único. O SUS tornou-se a espinha dorsal do projeto igualitário brasileiro. Entre um modelo de direitos sociais voltados para pobres, com o estigma e a precariedade embutidos, e um modelo de direitos sociais universais, a ser usufruído por todos, o SUS adotou o segundo. Nesse sistema, saúde não é bem de consumo para quem pode pagar, cuja qualidade depende de quanto se paga, mas direito de qualquer cidadão e dever do Estado. Consagrou-se uma concepção arrojada de justiça social.
A Constituição permitiu que a iniciativa privada prestasse assistência à saúde de forma complementar ao SUS (Art. 199). A partir daí, a política estatal optou por oferecer, de um lado, vultosos incentivos ao setor privado de hospitais e planos de saúde por meio de renúncia fiscal; de outro, por submeter o SUS a crônico subfinanciamento, que impede maior efetividade ao direito à saúde. O Estado retirou recursos do SUS para subsidiar o mercado, estabeleceu uma perversa relação entre o público e o privado e construiu eficiente engrenagem de concentração de renda. Boicotou a inspiração igualitária do SUS e se fez “Robin Hood ao contrário”, como se costuma dizer.
Hoje, 75% da população brasileira depende exclusivamente do SUS, que recebe pouco mais de 40% do que se gasta com saúde no país; os outros 25% da população se beneficia do “bolsa saúde” para contratar um plano privado. Deixa-se de arrecadar aproximadamente R$ 30 bilhões, o que ao mesmo tempo ajuda a corroer o SUS e a viabilizar amplo mercado.
Esse
arranjo regressivo ainda faz consolidar o discurso de que o SUS é caro,
ineficiente e merece ser “desafogado” pelo setor privado, senso comum
que justifica crescente mercantilização da saúde.
Esse movimento não é surpreendente e tem coerência com a trajetória de desnaturação disfarçada do SUS. É sintomático que o próprio ministro não se expresse no idioma do direito universal à saúde. A conversão definitiva do SUS em política para pobre, e da saúde em bem de consumo, não é mero rearranjo econômico-financeiro, mas mudança de código moral. Precisamos de clareza quanto ao caráter e à magnitude da mudança: sem um sistema universal de saúde, a proposta liberal de igualdade de oportunidades, da qual depende a liberdade, torna-se uma fraude. Virar essa chave representa o fim de um projeto constitucional.
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