A narcomilícia da Rocinha:
Moradores e comerciantes denunciam taxas do tráfico
Extorsões já rendem mais de R$ 1 milhão por mês
Não
bastam as 54 mortes em confrontos com a polícia contabilizadas pelo estado
desde setembro do ano passado, quando explodiu uma guerra entre facções pelo
controle da Rocinha. O sofrimento da comunidade é ampliado por meio de
constantes ameaças, que castigam o bolso de quem vive ali. Moradores e
comerciantes denunciam que estão sendo obrigados a financiar uma corrida de
bandidos por mais armas e munição: o tráfico passou a imitar a milícia, e, a
cada semana, cobra taxas de segurança, além de faturar em cima do transporte
alternativo e da venda de botijões de gás, água e outros produtos.
Muitos
reclamam que o “imposto do terror” vem aumentando, e a estimativa é que ele já
renda pelo menos R$ 1,3 milhão por mês ao bando que hoje domina a favela. Com o
anonimato preservado, pessoas que vivem e trabalham na Rocinha afirmam que,
muitas vezes, a cobrança das taxas ilegais é feita por integrantes da principal
associação de moradores do morro. A entidade, no entanto, nega a acusação e
afirma que nada pode falar sobre algo que desconhece. Já os delegados Antônio
Ricardo Lima Nunes, respectivamente ex-titular e atual responsável pela
delegacia da área, a 11ª DP, dizem que a comunidade pode estar sob o jugo do
que chamam de narcomilícia.
Além de
sofrerem com os tiroteios e as extorsões, moradores e comerciantes acompanham o
crescimento da desordem. Sem freio do poder público, construções irregulares se
multiplicam. No alto da localidade conhecida como Dionéia, pouco acima da sede
da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela, novas casas são vistas em
meio à mata. Na parte mais baixa do morro, a falta de controle urbano é
percebida junto ao asfalto da Autoestrada Lagoa-Barra, da entrada da estação do
metrô e sob a passarela próxima ao Túnel Zuzu Angel. Camelôs se espalham e
oferecem todos os tipos de produtos; mesas e cadeiras são distribuídas para
receberem consumidores de sanduíches, petiscos e bebidas.
Na tarde
da última quinta-feira, quem fez a festa foi o caminhão do Rei do Um Real, que
estacionou perto da passarela. Uma fila logo se formou: era gente interessada
em comprar bandejas de iogurte, pacotes de biscoito ou garrafas de refrigerante
pelo preço que o dono do negócio que leva no nome. Porém há produtos mais
“caros”: dois copos de requeijão custam R$ 5, e três dúzias de ovos saem por R$
10.
A fila é
controlada, homens que trabalham com o caminhão dividem a clientela em grupos,
que, em intervalos de alguns minutos, são autorizados a irem para um trecho da
calçada onde os produtos ficam expostos em caixas de papelão. Havia alguns PMs
por perto, mas eles se limitavam a observar o intenso vaivém; não abordavam os
vendedores para checar a procedência das mercadorias. — Cada
canto da comunidade é uma mina de ouro. Os bandidos deixam os camelôs se
instalarem, desde que paguem taxas. As vendas do comércio regular caíram por
causa dos tiroteios, mesmo assim, temos de aguentar a concorrência desleal e
pagar uma taxa que chega a R$ 300 por mês. Passam recolhendo. No dia marcado,
tenho que entregar o dinheiro. Estou adiando o pagamento de tributos para
manter meu negócio, mas está difícil — conta um lojista que trabalha há décadas
na Rocinha. — Antes, cada um contribuía como podia. Geralmente, o pessoal dava
cestas básicas; às vezes, tínhamos de colaborar com carne e cerveja para
festas. Hoje, damos tudo isso e ainda pagamos o imposto do terror.
‘IMPOSTO’
SOBE APÓS A GUERRA
A
situação piorou quando um bando invadiu a Rocinha a mando, segundo a polícia,
de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem. Mesmo preso em Rondônia, ele teria
determinado a expulsão de seu antigo braço-direito, Rogério Avelino da Silva, o
Rogério 157, que resistiu à investida e mudou de facção. Ele também foi capturado,
em dezembro do ano passado, mas seus aliados estariam dominando a favela.
O último
levantamento das atividades econômicas na Rocinha, feito em 2007, apontou que a
comunidade tinha cerca de 2.500 estabelecimentos comerciais. Isso significa que
a taxa de R$ 300 imposta pelo tráfico pode corresponder a uma arrecadação
mensal em torno de R$ 750 mil. Muitos
não pagam o imposto do terror por mês. Antes de setembro de 2017, a cobrança
dos mototaxistas era diária (R$ 4), mas passou a ser de R$ 75 semanais.
Pela
comunidade, circulam mais de mil, incluindo os que pegam passageiros em pontos
(Via Ápia, Largo das Flores, Largo do Boiadeiro, Cidade Nova, Rua Nova,
Laboriaux e Rua Um) e os rotativos. Isso garante pelo menos R$ 300 mil mensais
só em “pedágio”.
— Dependendo
do ponto, o recolhimento da taxa é feito num dia diferente — conta Z., na
profissão há 19 anos. — Os que têm sua própria moto e clientes fixos, conseguem
sobreviver com as corridas (cada uma custa R$ 3). Os que precisam pagar
R$ 150 de aluguel da moto, além dos R$ 75, estão passando dificuldades.
Segundo
motoristas, mais de 150 vans — entre as legalizadas que ligam São Conrado ao
Jardim de Alah, as que passam pela Rocinha em direção a Rio das Pedras e as que
trafegam pela comunidade Vila Canoas — também têm que pagar o “pedágio”. O
proprietário de um veículo legalizado diz que, há alguns meses, não era
obrigado a pagar taxa, mas precisava, ocasionalmente, fazer “serviços
gratuitos” para bandidos. Ele conta que, inicialmente, passou a ter que contribuir
com R$ 165 por semana e R$ 10 por dia trabalhado. — Este
mês, aumentaram para R$ 285 por semana e R$ 20 por dia. Estou desesperado —
afirma ele., que mora na Rocinha com a mulher e os filhos.
Há menos
de um ano, motoristas de carros particulares, alguns deles da Baixada,
estimulados pelo mercado criado pelos aplicativos de transportes, passaram a
fazer ponto na Rocinha. Costumam estacionar na Via Ápia para aguardar
passageiros. Quando não encontram espaço, ficam na Estrada da Gávea, próximo ao
Clube Emoções, esperando uma vaga no ponto. — Estão
cobrando R$ 135 por semana da gente. É muito — reclama um motorista.
PROJETOS
MUNICIPAIS
A
Prefeitura do Rio informa que vem desenvolvendo, desde o ano passado, uma série
de ações na Rocinha com investimentos que ultrapassam R$ 8 milhões. Entre os
trabalhos concluídos na região, segundo a assessoria de imprensa do prefeito,
há obras de contenção de encostas no valor de R$ 4 milhões e reformas de quatro
unidades de ensino concluídas em abril ao custo de R$ 3 milhões, além de outras
intervenções, como tapa-buracos, integração tarifária entre vans e o metrô,
identificação de casas sem janelas e obras de requalificação das fachadas de
150 casas.
O Globo
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