Longe de ser uma percepção infundada, fruto de má vontade prévia dos cidadãos em relação ao Poder Judiciário, trata-se de um sentimento popular instalado a partir de uma sucessão de fatos que vêm de muitos anos
A ideia de uma Justiça
lenta, arrastada, procrastinada está consolidada no imaginário da
sociedade brasileira. Não sem razão. Longe de ser uma percepção
infundada, fruto de má vontade prévia dos cidadãos em relação ao Poder
Judiciário, trata-se de um sentimento popular instalado a partir de uma
sucessão de fatos que vêm de muitos anos.
As causas desse mal são muitas. Vão desde o emaranhado de possibilidades recursais previstas no ordenamento jurídico, que podem fazer um processo tramitar por gerações, até a carência e a ineficiência de servidores da Justiça. A experiência pessoal dos cidadãos que se veem às voltas com os tribunais, em qualquer dos polos da ação, e casos emblemáticos, sem explicações plausíveis para a demora no julgamento, minam a confiança que deve emanar do Poder Judiciário como guardião dos direitos e garantias individuais e coletivos.
Um desses casos inexplicáveis que sedimentam no inconsciente coletivo da Nação a ideia de um Judiciário paquidérmico acaba de ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para ter uma ideia do absurdo, uma das autoras do processo em questão chamava-se Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon d’Orléans, a princesa que no dia 13 de maio de 1888 assinou a lei que pôs um ponto final na indignidade da escravidão no Brasil.
No dia 6/12, a Quarta Turma do STJ decidiu, por unanimidade, que a sede do governo do Rio de Janeiro, o Palácio Guanabara, pertence à União. O imóvel era um dos objetos de disputa tratados nesta que é uma das mais antigas ações em tramitação no País. Em 1895, a família Orléans e Bragança entrou com ação na Justiça para obter a devolução do Palácio Guanabara ou ser indenizada pela tomada do imóvel após a Proclamação da República. Na discussão de fundo, estava a dúvida se o palácio estava incluído entre os bens privados da família imperial ou se era um bem público destinado apenas à moradia, finalidade que teria perdido após a queda da monarquia.
Os herdeiros da família imperial argumentam na ação que a princesa Isabel e seu marido, o conde d’Eu, detinham “direito de propriedade plena” do palácio, que fora adquirido com o dote do casamento da princesa, depois incorporado ao Tesouro Nacional. Márcia Dantas, advogada da União, sustentou que a família imperial gozava apenas do direito de habitar o imóvel, direito que, em sua visão, foi extinto com a mudança do regime. “Com a República, o soberano da Nação, dono de tudo, deixou de existir. Não há que se falar em direitos próprios de uma forma de governo. Cessada a monarquia, cessam os seus direitos”, disse. A tese da advogada da União foi acolhida pelos ministros Antônio Carlos Ferreira, Raul Araújo, Isabel Gallotti e Marco Buzzi.
O Decreto n.º 447 de 18 de julho de 1891, assinado pelo então presidente da República Manoel Deodoro da Fonseca, incorporou ao patrimônio da União “todos os bens que constituiam o dote ou patrimonio concedido por actos do extincto regimen á ex-princeza imperial D. Isabel, Condessa d’Eu”. Custa crer que um processo precisou levar 123 anos para que se chegasse à conclusão de que valia o que estava escrito - em português antigo, porém inteligível - em um decreto editado no alvor da República.
No decorrer de todos esses anos de tramitação - o processo chegou a ser declarado extinto na década de 1960, decisão que foi revista posteriormente -, a ação movida pela família imperial passou por diversas instâncias, com reviravoltas processuais que serviriam como ótimo entretenimento no campo da literatura ou do cinema, mas na realidade só serviram para alimentar o desalento diante da kafkiana confusão para dar fim, em 2018, a um processo do final do século 19. E que não se animem os apressados. Este fim ainda pode demorar um tanto mais. Cabem recursos.
Editorial - O Estado de S. Paulo
As causas desse mal são muitas. Vão desde o emaranhado de possibilidades recursais previstas no ordenamento jurídico, que podem fazer um processo tramitar por gerações, até a carência e a ineficiência de servidores da Justiça. A experiência pessoal dos cidadãos que se veem às voltas com os tribunais, em qualquer dos polos da ação, e casos emblemáticos, sem explicações plausíveis para a demora no julgamento, minam a confiança que deve emanar do Poder Judiciário como guardião dos direitos e garantias individuais e coletivos.
Um desses casos inexplicáveis que sedimentam no inconsciente coletivo da Nação a ideia de um Judiciário paquidérmico acaba de ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para ter uma ideia do absurdo, uma das autoras do processo em questão chamava-se Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon d’Orléans, a princesa que no dia 13 de maio de 1888 assinou a lei que pôs um ponto final na indignidade da escravidão no Brasil.
No dia 6/12, a Quarta Turma do STJ decidiu, por unanimidade, que a sede do governo do Rio de Janeiro, o Palácio Guanabara, pertence à União. O imóvel era um dos objetos de disputa tratados nesta que é uma das mais antigas ações em tramitação no País. Em 1895, a família Orléans e Bragança entrou com ação na Justiça para obter a devolução do Palácio Guanabara ou ser indenizada pela tomada do imóvel após a Proclamação da República. Na discussão de fundo, estava a dúvida se o palácio estava incluído entre os bens privados da família imperial ou se era um bem público destinado apenas à moradia, finalidade que teria perdido após a queda da monarquia.
Os herdeiros da família imperial argumentam na ação que a princesa Isabel e seu marido, o conde d’Eu, detinham “direito de propriedade plena” do palácio, que fora adquirido com o dote do casamento da princesa, depois incorporado ao Tesouro Nacional. Márcia Dantas, advogada da União, sustentou que a família imperial gozava apenas do direito de habitar o imóvel, direito que, em sua visão, foi extinto com a mudança do regime. “Com a República, o soberano da Nação, dono de tudo, deixou de existir. Não há que se falar em direitos próprios de uma forma de governo. Cessada a monarquia, cessam os seus direitos”, disse. A tese da advogada da União foi acolhida pelos ministros Antônio Carlos Ferreira, Raul Araújo, Isabel Gallotti e Marco Buzzi.
O Decreto n.º 447 de 18 de julho de 1891, assinado pelo então presidente da República Manoel Deodoro da Fonseca, incorporou ao patrimônio da União “todos os bens que constituiam o dote ou patrimonio concedido por actos do extincto regimen á ex-princeza imperial D. Isabel, Condessa d’Eu”. Custa crer que um processo precisou levar 123 anos para que se chegasse à conclusão de que valia o que estava escrito - em português antigo, porém inteligível - em um decreto editado no alvor da República.
No decorrer de todos esses anos de tramitação - o processo chegou a ser declarado extinto na década de 1960, decisão que foi revista posteriormente -, a ação movida pela família imperial passou por diversas instâncias, com reviravoltas processuais que serviriam como ótimo entretenimento no campo da literatura ou do cinema, mas na realidade só serviram para alimentar o desalento diante da kafkiana confusão para dar fim, em 2018, a um processo do final do século 19. E que não se animem os apressados. Este fim ainda pode demorar um tanto mais. Cabem recursos.
Editorial - O Estado de S. Paulo
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