Quando a Presidência erra, outra
instituição corrige. É assim
que funciona na democracia. Está com o Senado o poder de evitar a insensatez do
presidente Bolsonaro de indicar o filho, sem qualquer experiência na
diplomacia, para o posto mais revelante da nossa política externa. É
evidentemente um ato de nepotismo e se alguma firula jurídica diz o contrário é
preciso repensá-la, porque é de uma clareza meridiana que ele só está sendo
escolhido por ser filho. Fidalgo.
[vários presidentes nomearam para a
Embaixada do Brasil em Washington, pessoas de fora da carreira diplomática. Até
um banqueiro, Walther Moreira Salles, Unibanco, exerceu aquele cargo.
Além do que, como é bem dito no
parágrafo acima, o Senado da República, tem o poder de vetar o nome indicado.]
O primeiro embaixador brasileiro na República era
um monarquista. Joaquim
Nabuco foi um representante esplêndido da República brasileira. O que
aprendemos com a História é que a escolha deve recair sobre o mais qualificado,
independentemente de sua tendência política. E nunca por ser parente do
presidente. Essa intenção de Bolsonaro fere o princípio da impessoalidade. O
deputado Eduardo Bolsonaro só foi pensado para o cargo por ser filho, nenhum
outro motivo. E o presidente paternalmente esperou o aniversário dele para que
assim atingisse a idade mínima.
A carreira diplomática tem exigências e
peculiaridades próprias. É complexa, delicada e cheia de sutilezas. Dizer que porque fala inglês
e espanhol pode ser embaixador equivale a escolher alguém para comandar um dos
Exércitos porque sabe atirar e marchar. O diplomata, como o militar, segue uma
sequência de etapas na carreira. Começa como terceiro secretário, ao sair do
Instituto Rio Branco, até chegar a embaixador. E no início assume
representações menores, até chegar à senioridade e às missões de maior
responsabilidade. Não se faz essa exigência, como bem sabem os militares, por
qualquer apego à escala hierárquica, mas porque no caminho cumpre-se o tempo
necessário do aprendizado.
O argumento de que Eduardo Bolsonaro conhece o
presidente americano Donald Trump e por isso é a pessoa indicada revela um
abissal desconhecimento de como funcionam as relações com os Estados Unidos. Ele acha mesmo que terá linha direta na Casa
Branca? Falará no Departamento de Estado com o subsecretário de assuntos
latino-americanos. Mas um embaixador é mais do que isso. Ele tem que
representar o país diante não apenas do governo, mas de toda a sociedade. Eduardo
como líder hoje do Movimento, uma falange de ultradireita, criada por Steve
Bannon, terá muita dificuldade de transitar pelos muitos segmentos da diversidade
americana. Não conseguirá sentir o país. Ele já cometeu
o primeiro dos erros que um diplomata profissional não cometeria: colocou
na cabeça o boné de um candidato. No ano que vem haverá eleições. O ambiente
está cada vez mais tenso por lá. As declarações de Trump esta semana contra
quatro deputadas da esquerda democrata — uma
naturalizada, três nascidas nos Estados Unidos — foram consideradas
racistas e a Câmara de Representantes aprovou ontem por ampla maioria uma moção
de censura ao presidente Trump.
Há, claro, chefes de missão que não são
diplomatas de carreira, e alguns fizeram bom trabalho, mas nunca houve no
Brasil uma escolha como essa. Ela representa mais um passo no desmonte da
brilhante e bem formada burocracia da qual o Brasil sempre se orgulhou. Mas,
além disso, ela ofende o nosso atual estágio de desenvolvimento democrático. O
Brasil nasceu como um país em que as portas se abriam se a pessoa era um
fidalgo, filho de alguém poderoso. Depois se transformou no país das
carteiradas, aquele cujo defeito se resumia na frase “sabe
com quem está falando”. A democracia foi corrigindo essas distorções. E
assim firmou-se a condenação ao nepotismo e a obrigatoriedade do princípio da
impessoalidade para a escolha de pessoas para os cargos públicos.
Essa ideia de Bolsonaro é ruim porque o jovem deputado não tem as
mínimas qualificações para exercer o cargo, e é deletéria porque joga o
Brasil de volta ao inaceitável tempo da fidalguia. Por isso, se a Presidência
não tem noção, que os outros poderes corrijam os erros. O Senado tem a
prerrogativa de decidir sobre nomeação de embaixadores e deve avaliar esse
assunto pensando no país e não na conveniência política. E o Supremo Tribunal
Federal (STF) precisa esclarecer se a Constituição, ao condenar o nepotismo,
ressalvou o posto de embaixador entregue ao filho do presidente como uma
situação aceitável. [cabe,
constitucionalmente, ao presidente indicar ao Senado Federal
aquele, que no seu entendimento atende os requisitos necessários para o
cargo - que estão claramente expostos na legislação;
o Senado tem a competência de sabatinar,
analisar e votar se o indicado preenche os demais requisitos para o
cargo.]
Coluna
da Míriam Leitão - Com Alvaro Gribel - O Globo
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