Opinião/Editorial
Sociedade brasileira se convenceu de que ela é uma arma essencial no combate ao racismo e à desigualdade
["CONSTITUIÇÃO FEDERAL
- Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
... ."]
O primeiro dever dos congressistas é verificar se ela cumpriu seu objetivo principal: ampliar o acesso de grupos sub-representados ao ensino superior. A discussão será naturalmente contaminada por paixões. As cotas foram um dos motivos por que a sociedade brasileira se tornou mais sensível à questão identitária. Na década anterior à lei, houve debate intenso, sobretudo em relação às cotas baseadas em critérios raciais. Havia dúvidas sobre sua eficácia como mecanismo de inclusão e sobre a reação que despertariam, ao tornar mais saliente a chaga do racismo e, indiretamente, retroalimentá-la.
São fartas as evidências de que elas atingiram a meta principal. Os egressos de escolas públicas nas instituições contempladas foram de 55% em 2012 a 63% quatro anos depois. Pretos, pardos e indígenas, de 27% a 38%. A diversidade maior entre o 1,1 milhão de graduandos nas universidades públicas é visível a quem anda por qualquer campus. “Os programas de ação afirmativa transformaram as universidades e tiveram impacto profundo na vida de muitos cotistas”, afirma a economista Fernanda Estevan, da Fundação Getulio Vargas.
Os cursos mais impactados foram os mais concorridos. Alunos de escolas públicas começaram a sonhar alto e a prestar vestibular para carreiras de prestígio. Uma pesquisa da Unicamp revelou aumento de 10% na escolha por medicina e por outros quatro cursos concorridos. Isso contribuiu para a mobilidade social, como demonstra estudo com alunos do Direito da Uerj. Entre os cotistas, 80% completaram o ensino superior, 70% passaram no exame da OAB e 30% foram trabalhar como advogados. Nas federais, houve impacto positivo também nos cursos em que oriundos de escolas públicas já eram mais da metade. O percentual cresceu, mostrando que havia demanda reprimida. Pesquisas também demonstraram o efeito específico das cotas raciais. “Sua adoção foi quase cinco vezes mais eficaz para o aumento nas matrículas de estudantes pretos, pardos e indígenas oriundos de escolas públicas que num cenário sem elas”, diz a economista Úrsula Mello, da Barcelona School of Economics.
Em duas áreas, os congressistas deveriam promover melhorias: acesso e retenção. Na primeira, será importante examinar a eficácia da regra que reserva vagas aos com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo. Esse valor põe o aluno na metade superior da pirâmide social (numa família de quatro, a renda pode chegar a R$ 7.272). Se o objetivo é abrir portas aos pobres, o crivo precisa ser mais rígido. Nas federais, a lei aumentou em apenas 2,4 pontos percentuais as matrículas de alunos com renda familiar de até um salário mínimo. Outra questão relevante está ligada às cotas raciais. A lei determina que os percentuais destinados a pretos, pardos e indígenas sejam definidos pela proporção de cada grupo no Censo. Como ele só ocorre de dez em dez anos, deveriam ser levados em conta levantamentos mais frequentes.
O maior desafio dos congressistas é melhorar a retenção. Parte considerável dos cotistas não termina o curso. Uma análise da USP revela desistência de 25% entre pretos, pardos e indígenas (entre não cotistas brancos, 17,6%). É possível que a realidade seja pior. Alunos ricos, quando saem da faculdade, costumam trocar de curso. Cotistas são obrigados a abandonar o sonho da graduação. “Atacar o problema da evasão requer pensar nas causas da desistência”, diz o economista Michael França, do Insper. Se a questão é financeira, é preciso ter um amplo programa de bolsas de estudos. Se o problema é acompanhar as disciplinas devido a deficiências no ensino médio público, o recomendável são programas de reforço. Medir de forma sistemática o desempenho acadêmico dos cotistas é chave para evitar o abandono.
Como as razões que levaram à criação da Lei de Cotas persistem no Brasil, ela deveria ser prorrogada, com tais melhorias, para ser reavaliada mais adiante. Na discussão sobre a nova lei, os parlamentares deveriam manter o foco nas questões objetivas e evitar a contaminação ideológica do tema. O país conta com pesquisadores sérios, dispostos a examinar cada ponto sem paixão. São esses que o Congresso deve ouvir para que o Brasil avance ainda mais no combate ao racismo e à desigualdade.[Defender o MÉRITO agora passou a ser contaminação ideológica?]
Editorial - O Globo
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