Bruna Frascolla
Mano Brown
Uns anos atrás, antes de se falar em cultura do cancelamento, Eli Vieira cunhou a expressão “in dubio pro hell” para descrever a conduta dos ativistas. “Na dúvida, condene ao inferno”, em vez do dito latino “na dúvida, decida-se a favor do réu.”
Há situações dúbias
em que não dá para saber se a fala de alguém foi motivada por algum
preconceito injusto. Eis é um fato outrora elementar da vida humana que
foi completamente apagado pelo ativismo dos canceladores: as mentes dos
outros são privadas, e na verdade é raro sabermos ao certo o que passa
na cabeça de outrem. Hoje é normal agir como se todo mundo soubesse
exatamente o que o outro está pensando, e mais: todo mundo tem certeza
das intenções mais diabólicas dos outros. Não há dúvida; há a certeza da
maldade.
O rapper Mano Brown faz show no Rock in Rio 2019: o jornalista Silvio Navarro fez tuíte sobre o músico, mas depois apagou e pediu desculpas| Foto: EFE/ Marcelo Sayão
É sintomático que um dito latino do mundo jurídico sirva para pensar o assunto. Afinal, julgar o caráter alheio é algo que fazemos individualmente e na vida privada. Nesse âmbito, há convicções que não podemos provar em juízo, nem devemos precisar provar em juízo. No entanto, vivemos uma situação em que a suposta falha de caráter precisa caber num tipo penal e, enquanto o Supremo não der todas as canetadas suficientes para criar tantos tipos penais quanto queiramos, o juízo moral precisa ser feito na internet por uma coletividade uniforme.
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Esse tribunal, à maneira do Sleeping Giants, serve para acabar com a fonte de renda das vítimas. E como a coisa evoluiu de uns anos para cá, nem podemos mais dizer “in dubio pro hell”. Não há dúvida. Existem predestinados ao inferno e cabe encontrar um indiciozinho qualquer para mandá-lo para o andar de baixo.
O mais novo caso O mais novo cancelado é Sílvio Navarro. Mano Brown comunica que exigirá passaporte sanitário para o seu show. Sílvio Navarro tuíta que Mano Brown bem poderia exigir a certidão antecedentes criminais em vez disso. Pausa: se você está engajado na discussão do passaporte vacinal – e o público de Sílvio Navarro está –, você sabe que volta e meia alguém sugere uma exigência mais sensata do que o passaporte vacinal a fim de mostrar a irrazoabilidade do passaporte. Dada a alta reincidência dos criminosos brasileiros, faria mais sentido proteger o povo exigindo certidão de antecedentes criminais do que as famigeradas vacinas de covid.
Quem é Mano Brown? Quanto a mim, me lembro dele por causa daquele esculacho que ele deu na cúpula petista nas eleições de 2018, dizendo que o partido não falava mais com o povão. Ele falou isso, frise-se, enquanto apoiador insatisfeito com estratégia eleitoral. No mais, sabia ser do Racionais MC’s, um conjunto de rap que não me dizia nada, porque não gosto de rap. Sabia ainda que as músicas desse conjunto estavam na bibliografia da FUVEST, porque um amigo meu, um paulista doutor em geografia, solta fogo pelas ventas toda vez que fala da bibliografia da FUVEST por causa disso. Pelas convicções dele, que já foram muito comuns e são iguais às minhas, os alunos de todas as classes sociais devem estudar língua culta, em vez de ficar com essa coisa de os mano pra lá e os mano pra cá.
Mas voltemos a Sílvio Navarro. Para a minha sincera surpresa, o tuíte de Sílvio Navarro foi tido como um evidente racismo. Para minha surpresa e também revolta, já que sou nascida e criada na Bahia e, portanto, tudo quanto é cultura negra brasileira me toca. Se há algo que possa ser chamado de “cultura negra brasileira” neste país mestiço, é a cultura de Salvador (onde nasci) e do Recôncavo (onde moro). E eu não tenho nada a ver com “os mano”, que são coisa de paulista.
No fim das contas, como Sílvio Navarro trabalha para uma empresa que demitiu Constantino sem pestanejar, não ligando para o fato de que ele jamais defenderia o estupro da própria filha, ele apagou o tuíte e fez outro, esclarecendo o que não precisava ser esclarecido e pedindo desculpas: “O tweet anterior sobre o show do Mano Brown foi apagado. Não tem absolutamente nada a ver com racismo ou estilo musical – e sim, a letras sobre violência e crime. Como a mensagem não foi clara e muita gente se sentiu ofendida, peço desculpas.”
Graças a Deus que meu custo de vida é baixíssimo. Preferiria perder o meu emprego a escrever um negócio desses. Aí eu sigo os conselhos dos meus vizinhos e vou criar galinha.
O rol de pressupostos Vamos arrolar os pressupostos que alguém precisa abraçar para chamar Sílvio Navarro de racista. O primeiro de todos é que Mano Brown é negro. Mano Brown é da cor de ACM Neto, que, quando se declarou pardo ao TSE, teve que voltar atrás por causa de chilique do movimento negro. Mano Brown é da cor de muita gente que se considera branca e está feliz, tacando pedra em Sílvio Navarro, se sentindo salvadora dos negros. Faço um pedido ao paladino defensor dos negros: vá ao espelho. A sua cor é assim tão diferente da de Mano Brown? Então por que ele é negro e você é branco? Será que o racista aqui não é você, que precisa apontar uma terceira pessoa como “o negro”?
O outro pressuposto é o de que a música feita pelo “negro” Mano Brown é a música dos negros. Não o afoxé, não o samba de roda: o rap do Mano Brown. Daí vemos o pressuposto complexo de que existe uma música negra no Brasil, e essa música é feita por negros e para negros.Mano Brown – e não o Samba Chula de São Braz – faz música negra, seu público é negro. Por isso pedir antecedentes criminais é racismo, porque só negros vão ao show do negro Mano Brown.
Música com tema do tráfico
Já mencionei que escritores fazem muito bem em morar perto de cabaré, pois dá assunto. Na porta do cabaré da minha rua junta um pequeno tráfico, e além disso há uma jukebox que toca a música que os clientes pedem. Dá pra saber quanto o cliente é traficante por causa da música. Música de peão é Zé Vaqueiro, João Gomes, Gusttavo Lima. Música de traficante lá é Robyssão, baiano, e MC Poze do Rodo, carioca.
Espiar o estilo de vida dos pequenos traficantes foi frustrante. É tudo por mulher e roupa cara. A meta deles é juntar “muito” dinheiro (em Cachoeira mil reais é muito dinheiro) e se tornar o “rei das cachorras”, ostentando roupas caras (o xing-ling da Nike) e fornecendo acesso a drogas caras (a cafeína sintética que passa por cocaína).
As letras de música refletem isso. Robyssão canta: “Quer ganhar dinheiro fácil e andar todo arrumado?/ Vem balançar.” E o tal MC Poze eu demorei a identificar. Toda hora tocava um funk, mas eu não conseguia entender o que ele estava falando para botar no Google. Felizmente ouvi esse mesmo funk em São Paulo, passando na TV num bar em área nobre, e pude perguntar quem era o artista ao dono do bar. Tratava-se da música “A cara do crime”, de MC Poze. Vocês podem assistir aqui com legendas e prestar atenção à letra, que revela algo também do estado moral da classe média.
E se você não assistir, eu conto mesmo assim que o MC Poze, um mulato, se gaba de ser “pretinho”, ter cara de criminoso, ser sempre parado em blitz e deixar os policiais furiosos, porque não conseguem descobrir nenhuma irregularidade. Na letra o eu lírico deixa muito claro que é criminoso, traficante, anda cheio de dinheiro e as patricinhas correm atrás dele. Há alguns percalços, muitos querem tomar o seu lugar, os subordinados morrem na guerra, mas tudo vale a pena. A mensagem é essa.
As letras do Racionais MC’s são no mesmo estilo. Depois de ouvir “A cara do crime”, passe a “Eu sou 157”, do Racionais. Ambas retratam vida de bandido e ambas tentam dar um verniz de crítica social. No século XXI, a sociedade não se conforma em ver o pretinho se dando bem. No século XX, era a lenga-lenga contra o sistema. As mesmas recompensas já estavam em Racionais: “Hoje eu sou ladrão, artigo 157 / As cachorra me ama, os playboy se derrete.”; “Vagabundo assalta banco usando Gucci e Versace / Civil dá o bote usando caminhão da Light”.
Devo dizer que o MC Poze compunha música para o Comando Vermelho e foi proibido pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia de fazer um show em Salvador. Uma facção local ameaçava cravá-lo de balas e a polícia não queria confusão.
Quem é racista mesmo?
Na minha terra há muitos negros. Há negros médicos, negros juízes, negros garis, negros traficantes. Apenas uma parcela dos negros de minha terra aprecia músicas que, no mínimo, naturalizam o estilo de vida da bandidagem e reforçam os seus valores. Racista é quem acha que o negro brasileiro é o Mano Brown.
Bruna Frascolla, colunista - VOZES - Gazeta do Povo