Tudo isso significa que o Grêmio foi mero sparring? Não, o placar tem
muito a ver com as virtudes do Flamengo e também com questões de ânimo.
Jogos de futebol são uma mistura complexa de fatores. O plano inicial
do Grêmio funcionou, dados os problemas físicos que o fragilizavam.
Renato, por 45 minutos, disfarçou a disparidade com um jogo bem pensado.
Teve até momentos de superioridade.
Ao colocar Michel como terceiro meio-campista, abriu mão de seu modelo
de construção desde a defesa, reforçou o poder de marcação e apostou em
bolas mais longas. Só não abria mão das perseguições defensivas para
marcar. A mobilidade dos jogadores do Flamengo, arrastando seus
marcadores e tirando-os do lugar, claramente abria espaços, ora pelos
lados, ora à frente da área.
Mas este Grêmio camaleônico, muito
concentrado e numa versão mais marcadora, ganhava duelos e não permitia
escapadas dos rubro-negros nos espaços vazios. Teve até uma excelente
chance no início, com Maicon. E ameaçava ganhar as costas da linha
defensiva do Flamengo.
Nestas horas,
é preciso uma chave para o cadeado. O jogo indicava
que
ela seria Éverton Ribeiro, por sua capacidade de giro, de drible, de
livrar-se de marcadores após movê-los do lugar e desequilibrar a
marcação rival. Ele criou as duas primeiras chances do Flamengo, que aos
poucos se tornava superior.
Jorge Jesus pensara também em outro aspecto do jogo: os volantes do
Grêmio, iniciadores de todas as jogadas. A pressão avançada do Flamengo
concentrava-se no centro do campo. E claro ficou que havia um elo
fraco: justamente Michel, inseguro nos passes. Deu uma bola mal tocada
para Maicon, que, cercado por Gerson e Éverton Ribeiro, autor do bote,
permitiu a transição rápida até o gol de Bruno Henrique. Três minutos
antes do intervalo, o jogo mudava. A dificuldade imposta pelo Grêmio
reforçava a capacidade de adaptação deste time de Jorge Jesus às
situações.
Meme mostra o técnico Jorge Jesus segurando Renato Gaúcho no colo (Reprodução/Twitter)
Porque para deixar o Flamengo desconfortável, impedir que desse ritmo ao
jogo, o custo que o Grêmio assumiu era perder poder ofensivo, apostar
em poucas bolas. Ao sofrer o segundo gol na primeira ação da segunda
etapa, e diga-se de passagem um grande gol de Gabigol,
o plano gaúcho
perdera sentido. Mas houve outro efeito: a concentração nos encaixes de
marcação, nas perseguições, já não era o mesmo.
O Grêmio perdeu também a
fé. E o fez diante de um time impiedoso.
De novo, Éverton Ribeiro exibiria sua lucidez. Arrastou Cortez da
lateral esquerda ao meio-campo, produzindo uma sequência de compensações
que deixou Filipe Luís livre no lado oposto, o esquerdo. Éverton
iniciou o lance, a bola atravessou o campo e Geromel fez pênalti.
Gabigol bateu e o jogo se transformou num monólogo.
Dois gols em bolas paradas, um de Pablo Marí e outro de Rodrigo Caio,
são provas de que este Flamengo é insaciável na busca pelo ataque. Outro
de tantos paradigmas que Jorge Jesus quebra:
intensidade, compactação,
inteligência tática, a volta dos dois atacantes, ofensividade... O jogo
mostrava outra. Contra um Grêmio que se especializou em privilegiar
copas e poupar jogadores no Brasileiro, este Flamengo que trata cada
compromisso como decisão sobrava também fisicamente. O rubro-negro pode
até não ser campeão da América. Mas Jorge Jesus obriga o futebol
brasileiro a pensar. Porque por mais que se argumente que o investimento
do Flamengo é alto, que Gabigol é um atacante de nível raro no país,
que Rafinha e Filipe Luís há poucos meses jogavam em dois dos principais
times da Europa e dominam as laterais com excelência, que Gérson dita o
ritmo do jogo, o fato é que os parâmetros de cobrança estão prestes a
se transformar.
Um sintoma: encerrado o jogo, enquanto os jogadores permaneciam no campo
longos minutos celebrando com a torcida, como numa despedida do
Maracanã em noites de Libertadores, a sensação era de um público grato
por algo mais do que os resultados.
A torcida vê no campo um futebol
que a representa.