Nossa Constituição é fruto de um amplo processo de
mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os
militares, derrotados com a eleição de Tancredo Neves
O Chile decidiu em plebiscito convocar uma Constituinte formada por homens e mulheres, meio a meio, e sem a participação dos atuais mandatários, somente cidadãos. Foi o desfecho de um processo de insatisfação popular com o “Estado mínimo” chileno, uma herança do ditador Augusto Pinochet, consagrada na Constituição de 1980. Muita coisa mudou desde então, com sucessivas reformas constitucionais, mas o estigma de uma Carta pinochetista, ou seja, de inspiração fascista, havia permanecido, assim como o caráter privatista de uma legislação que não contemplava os direitos sociais. A convocação da Constituinte chilena, portanto, era uma questão de tempo e representará o fim de um ciclo político de 40 anos de transição do autoritarismo para a democracia plena.
[o Chile está caçando, no popular, 'sarna para se coçar';
considerar que o Chile vive sob autoritarismo e precisa de democracia plena, é um grande erro - especialmente se decidirem seguir o modelo da 'constituição cidadã' vigente no Brasil.
A grande falha da Constituição Federal do Brasil é o detalhamento excessivo, absurdo, imposto pelos competentes constituintes, e tudo se agrava quando as minúcias complicam e a Carta tem que ser interpretada (ou adaptada) pelo seu guardião supremo.]
É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma
Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado
democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica
das controvérsias”. [lindo texto; é integralmente cumprido? o texto do preâmbulo e o que é por ele apresentado.] Nossa Constituição é fruto, simultaneamente, de um
amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à
democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a eleição
de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do
poder em ordem.
Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros
(PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um
plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é
uma tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de
junho de 2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente
rechaçada pelos políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do
outro lado do espectro político, com propósitos igualmente suspeitos,
porque sabemos que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de uma
Constituição que lhe desse mais poderes em relação ao Judiciário e ao
próprio Legislativo.
Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é social-liberal. O
pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual “constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I) construir
uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o desenvolvimento
nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente
quanto à economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo
que os chilenos, ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam
—, sempre incomodou os setores mais conservadores da nossa sociedade. [com todas as vênias, não são os dispositivos e sim a concessão indiscriminada de direitos - alguns de dificil convívio com outros, contraditórios e o pior = direitos demais sem a contra partida de deveres.]
Mais poderes
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas
não funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz
o ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é
cumpri-la. O que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo
Tribunal Federal (STF), cuja missão é zelar pelo respeito à
Constituição, vem sistematicamente tomando decisões que obrigam ao
cumprimento de diversos dispositivos desse artigo, sobretudo em relação
às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das críticas à
“judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do
exercício desse papel, como “poder moderador”, [felizmente, a citação está entre aspas - são elas que impedem que o texto contrarie a própria Constituição.
Saiba mais: Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes - Ives Gandra da Silva Martins.
Por favor, leiam e encontrem uma contestação plausível - vejam também a LC 97/99. , editada em cumprimento ao determinado no art. 142 da CF.]
Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para agradar
ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da
corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores
conservadores do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade.
Muitos gostariam de mudar a Constituição por maioria simples, como
acontece nas constituintes. Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por
três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em duas votações, sendo
que são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas: (I) A
forma federativa de estado; (II) O voto secreto, direto e universal;
(III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais.
Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade da
vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu
contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir
sobre esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do
dano direto e imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil.
Bolsonaro, por diversas vezes, investiu contra o Supremo por acreditar
que o fato de ter sido eleito presidente da República lhe dá poderes
maiores do que aquele que a Constituição lhe atribuiu. Mudar a
Constituição, inclusive para alterar a composição da Suprema Corte e
amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger sucessivas vezes
foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam seus
países autoritariamente.
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense