“De onde vem tanta energia? Não é das academias de ginástica, é
de certas contradições entre a revolução nos costumes, que a liberdade
proporciona, e os preconceitos arraigados e discriminações”
Há muito tempo, não tínhamos um carnaval como o deste ano, em que a
alma transgressora dos cidadãos, liberada pela revolução dos costumes,
se choca frontalmente com a política oficial, que propõe uma espécie de
contrarrevolução cultural.
O carnaval é imoral, digamos, assim, no
sentido mais conservador e religioso do termo. A propósito dessa
contradição, a cultura judaica, tão perseguida, tem muita coisa a nos
ensinar. Para o rabino Nilton Bonder, a
“alma” seria nada mais que o
componente consciente da necessidade de evolução, a parcela de nós capaz
de romper com os padrões e com a moral. Sua natureza seria, portanto,
transgressora, por não corroborar os interesses da moral
.[altura judaica já não é uma fonte de acertos o entendimento desse rabino só confirma o quanto aquela cultura está errada.
Os que aproveitam o carnaval para praticarem tudo que desejam mas se sentem inibidos em outras ocasiões, devem ter em conta:
- no aspecto ético, religioso e moral, o que eles fazem no carnaval continua sendo tão repudiado, tão abjeto quanto é no resto do ano;
- o portador do homossexualismo que decide sair do armário no carnaval, comete o mesmo erro, merece o mesmo repúdio, dados aos que praticam tais atos no resto do ano.]
Um dos exemplos utilizados pelo rabino para explicar a tese, no livro
a Alma Imoral, que serviu de roteiro para o monólogo interpretado por
Clarice Niskier, de muito sucesso, é justamente a relação corpo-alma. Ao
longo dos anos, a cultura afirmou ser o corpo a fonte do imoral e a
alma, do moral.
O primeiro ato de Adão e Eva como seres conscientes foi
cobrir o corpo nu, dando a noção de indecência e imoralidade do corpo,
frente ao despertar da alma supostamente moral. No entanto, é justamente
o contrário. A alma é imoral e não o corpo.
A tradição tem três eixos: a família, os contratos sociais e as
crenças.
A primeira foi moldada para atender às necessidades
reprodutivas;
os segundos, para preservação da vida humana;
as
terceiras, para respaldar tudo isso no plano ideológico. O processo
civilizatório é a transgressão das tradições, ultrapassando-as, geração
após geração, mas preserva esses objetivos vitais. No teatro, Clarice Niskier apresenta o monólogo em estado de nudez
real e, ao mesmo tempo, simbólica. A alma desnuda, em conflito com o
corpo vestido, coloca em xeque dogmas religiosos.
“A psicologia
evolucionista aponta o corpo como o gerador da moralidade. É justamente
para dar conta de seus interesses de preservação que a moralidade é
engendrada. Esta moralidade é oposta às forças transgressoras da alma.
Assim, a alma vive do que a sociedade reconhece como imoral”, argumenta o
rabino.
Quarta-feira de Cinzas
Toda nudez será castigada, diria Nelson Rodrigues, menos no carnaval. É
impressionante o ressurgimento do carnaval de rua em todo o país como
uma festa de grandes multidões. Já era uma tradição no Rio de Janeiro,
Salvador e Recife/Olinda, mas agora se transformou em megaevento popular
em outras cidades, como São Paulo, cujo carnaval já não deve nada a
ninguém, e Brasília, cujos blocos tomam conta do Plano Piloto desde a
semana passada. De onde vem tanta energia? Não é das academias de
ginástica, é da tal alma imoral. E de certas contradições entre a
revolução nos costumes, que a liberdade proporciona, e os preconceitos
arraigados e discriminações que as pessoas sofrem no cotidiano, pelos
mais diversos motivos. O carnaval as liberta.
O antropólogo Roberto Da Matta, há mais de 40 anos,
nos demonstrou
que o carnaval é um ritual que vira pelo avesso as tradições de nossa
sociedade: o povo organiza a festa, os pobres se vestem de nobres, as
mulheres aparecem irreverentes e desnudas, troca-se o dia pela noite, a
relação com o sobrenatural e o imaginário se materializa nas ruas por
meio das pessoas comuns.
“Carnavais, malandros e heróis” também nos mostra porque a festa tem
que acontecer, apesar das tragédias recentes, como as de Brumadinho e do
Ninho do Urubu. Com seus pierrôs e colombinas, porta-bandeiras e
mestres-salas, monstros e palhaços, marinheiros e melindrosas, pinguins e
batmans, super-homens e mulheres-maravilha,
o carnaval é o abre-alas da
crítica social e das mudanças dos costumes. Na Quarta-feira de Cinzas, a
festa acaba e tudo volta ao normal, mas é sempre bom parar para pensar
no recado dos foliões. Eles mostram o que se passa na alma das ruas.
[felizmente eles só tem voz por parcos três dias.]
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB