Reforma política quer tirar do eleitor decisão sobre quem o representa no Legislativo
A lista que era de Janot e agora é de
Fachin, resumindo as delações feitas pelos 77 executivos e ex da
Odebrecht, pôs o Congresso Nacional em polvorosa. Todos os deputados
federais e senadores que foram citados com a mão no buraco do tatu, em
doações eleitorais no caixa 2 ou recebendo propina em troca de atuação
em favor da maior empreiteira do Brasil (e que se tornou a número um
exatamente porque participou do maior escândalo de corrupção da História
do Brasil) querem uma saída para evitar processo e, em última
instância, prisão.
A saída evidente tem o pomposo nome de
lista fechada. É simples entender. Atualmente as Casas de leis – nos
níveis municipal, estadual e federal – têm as bancadas partidárias
distribuídas matematicamente pelo critério dito proporcional. Ou seja:
os 35 partidos políticos autorizados a funcionar pela Justiça Eleitoral
apresentam listas de candidatos escolhidos em convenções para oferecer à
escolha do eleitor. O cidadão apto a votar escolhe um desses nomes para
a Câmara Municipal, a Assembleia Legislativa ou Distrital (no caso do
Distrito Federal) e a Câmara dos Deputados. Ao votar em qualquer um dos
candidatos, o eleitor também sufragará sua legenda. A proporção funciona
da seguinte forma: o total dos votos é dividido pelo número de vagas e
estas são preenchidas de acordo com o total conseguido pela legenda,
chegando a um número denominado quociente eleitoral. Os candidatos mais
votados para aquela bancada a ocupam de acordo com o número de vagas
determinado pelas vezes permitidas pelo tal quociente. Os que não
atingem a vaga, mas dela se aproximam, ocupam as suplências e podem
assumir uma cadeira na Casa de leis desde que algum dos efetivamente
eleitos a desocupe – por morte, licença, doença ou, o que é mais comum,
pela ocupação de cargo público.
O sistema proporcional não é uma das dez
maiores maravilhas do universo contemporâneo, é claro. E seus defeitos
foram agravados na Constituição de 1946 e, depois, muito mais pelo
Pacote de Abril de 1977, que criou os biônicos e também a matemática
absurda das bancadas que representam os eleitores de determinados
Estados. Os mais populosos, principalmente São Paulo, são
subrepresentados. Os antigos territórios, artificialmente elevados a
Estados, são, ao contrário, representados muito além do que deveriam.
Isso cria uma enorme deformação na matemática da representação, chegando
a configurar o que se chama de crise de representatividade.
O relator da reforma política, que se
propõe a resolver essa crise, é o deputado Vicente Cândido (PT-SP). Sua
ideia mais radical é adotar a chamada lista fechada. A defesa que ele
faz do novo método se baseia, segundo sua palavra, numa prática adotada
em mais de 80% das democracias mais tradicionais do mundo. Será? Bem,
vamos ver do que se trata: a direção partidária faz uma lista em ordem
crescente dos candidatos às vagas. O sistema proporcional seria mantido,
com todas as suas distorções, inclusive seus desafios à aritmética, com
uma diferença: só caberia ao eleitor votar na legenda, ou seja, no
partido. Os candidatos eleitos para as vagas seriam listados, sem sua
aprovação, pelos manda-chuvas partidários. O sistema é realmente adotado
em democracias avançadas, pois fortalece os partidos, cuja democracia
interna é valorizada. A fragmentação dos partidos em nosso caso, ao
contrário, decretaria uma espécie de ditadura dos hierarcas partidários,
criando uma situação em que o eleitor, muito pouco chamado a escolher
seus governantes (apenas nas eleições), realisticamente não elegeria
sequer os que se dizem seus representantes.
Atualmente, ando muito seduzido pela
ideia de Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias, que
assinaram no domingo 9 de abril passado um Manifesto à Nação na página
de Opinião do Estadão, sugerindo um plebiscito para
convocar uma Constituinte, que pode ser, por decisão da cidadania,
congressual, como foi a de 1988, ou independente. Neste caso, o
colegiado seria eleito pelo povo, mas sob duas condições: nem pode ser
mandatário atual nem disputar mandato ao longo de oito anos. A reforma
relatada por Vicente Cândido tem um objetivo: garantir a reeleição dos
parlamentares citados na delação do mundo todo, que acaba de vir a
público. A tendência é que, pelo menos no caso dos legisladores, haja
uma renovação maior do que a costumeira, que já tem sido bem grande a
cada quadriênio. Carvalhosa propõe uma lista negra de representantes do
povo investigados por ordem do relator da Lava Jato no Supremo Tribunal
Federal (STF), o ministro Edson Fachin. Eu chego a ser mais radical:
minha lista negra inclui todos os ocupantes de cargos no Legislativo e
no Executivo. Poucos terão lista negra e menos ainda farão como quero
fazer. Mas é certo que a renovação não será pequena.
Seria nula, isso sim, se prevalecesse a
mudança da regra do jogo proposta por Cândido, que não tem honrado seu
sobrenome. Ao contrário: a lista fechada seria a boia salva-mandatos de
todos os dirigentes e queridinhos desses dirigentes partidários, a
serem incluídos, sem sombra de dúvida, na tal lista fechada. Em minha
experiência de repórter, tomei conhecimento desse sistema, quando
vigorava na Venezuela uma caquética democracia elitista. A democracia
derreteu, o bolivarianismo assumiu e é um risco que, em nossas
condições, não estou disposto a defender. Vade retro, Satanás, eparrê
mil vezes!
O petista paulista tem todas as razões
do mundo para propor a armadilha. Segundo denúncia do Ministério
Público, o deputado Vicente Cândido, de codinome “Palmas”, solicitou e
recebeu 50 mil reais da Odebrecht para atuar na busca de uma “solução
para o financiamento” da Arena Corinthians, estádio construído para a
Copa de 2014. Ele também é um destacado integrante da Bancada da Bola e
ocupa um cargo de diretor na Confederação Brasileira de Futebol, onde
desempenha o papel de homem forte de Marco Polo Del Nero, presidente da
entidade e alvo de investigações do FBI por suspeita de participar de um
esquema de propinas da Fifa. A abertura de inquérito deu-se com base
nos depoimentos dos ex-executivos da empreiteira Alexandrino Alencar,
Carlos Paschoal e Benedicto Barbosa Júnior. Em nota, o deputado afirma:
“A forma como a mídia trata os pedidos de abertura de inquérito confere
ares de condenação. Tenho certeza de minha idoneidade e me coloco a
disposição para quaisquer esclarecimentos à Justiça”.
Há boas reformas a fazer sob a vigência
da atual Constituição. São os casos da cláusula de barreiras para coibir
a proliferação das legendas sujas e da proibição das coligações nas
eleições proporcionais. Mas é tal o estágio de putrefação do Estado
brasileiro que para a Nação não atolar no pântano dos políticos só será
possível reconstruir as instituições fora dele por meio da Constituinte
independente pregada por Carvalhosa, Bierrenbach e Dias.