A classe média na penúria
Produtos e serviços com elevação de
preços maior que a inflação oficial destroem o poder de compra e obrigam
milhões de brasileiros a mudar os hábitos de consumo
Enquanto a crise econômica não chega ao bolso das pessoas, elas tendem a
achar que os problemas anunciados pelos especialistas não passam de
miragem. O PIB empacou? Os investimentos caíram? O governo trabalha sem
superávit? Se isso não afeta a vida ou trabalho de alguém, provavelmente
não vai significar coisa alguma. Mas as questões financeiras dos
brasileiros passam por um momento singular. A inflação, aquela velha
senhora que parecia domada pelo Plano Real, está de volta. Junto dela,
ressurgem lembranças ruins e os temores que pareciam confinados a um
passado distante. Para quase todo mundo, não há nada mais chocante e
verdadeiro no campo econômico do que a descoberta de que os preços estão
em forte disparada. Isso não só escancara a crise – sim, ela está aí e
desta vez veio com força – como causa impactos financeiros imediatos.
DE SAÍDA
Paolina Pin, 21, trancou a faculdade para estudar nos EUA. “Mesmo com o dólar
a R$ 3, sai mais em conta viver lá do que morar sozinha em São Paulo”, diz.
Paolina mora com a mãe, a empresária Catia, 43, e o irmão, Levi, 2.
Para economizar, Catia tem cortado o cabelo do filho em casa
Para a classe média, essa realidade é ainda mais cruel. A conta para
esse grupo de brasileiros está pesada. Entre janeiro e abril, as
mensalidades escolares subiram, em média, 10%. No supermercado, alguns
alimentos ficaram, neste ano, 40% mais caros. O preço da gasolina
acelerou 9%. Nos cursos de idiomas, a alta superou 11%. Tudo isso para
uma inflação oficial de 4,56% nos quatro primeiros meses de 2015. Está
caro demais viver no Brasil – e, se o governo não agir com tenacidade,
vai ficar ainda mais.
O estouro inflacionário deixou a classe
média no sufoco e vem provocando mudanças nos hábitos de consumo. A
publicitária e blogueira Loreta Berezutchi, 32 anos, está acostumada a
fazer contas para encaixar as necessidades e caprichos dos filhos Pedro,
7, e Catarina, 5, no orçamento que divide com o marido, o engenheiro
civil Flávio, 37. No começo do ano, quando viu que as mensalidades da
escola subiriam cerca de 15%, Loreta passou um pente fino na imensa
lista de materiais pedidos e reciclou lápis, pastas e cadernos. Ao
perceber que o avanço dos preços era generalizado, sobretudo o do leite,
que praticamente passou a custar o dobro, a blogueira tomou medidas
ainda mais radicais. Cortou os R$ 300 que ela e o marido gastavam na
academia e dividiu um professor com outros moradores do prédio onde
mora, ao custo de R$ 70 por pessoa. Na mesma época, o plano de celular e
internet, que antes custava R$ 99, aumentou para R$ 135. “Não dava para
manter como estava”, diz Loreta. “Então reduzi meu tempo de ligação e
dados de internet. Continuei pagando o mesmo valor, mas por um serviço
pior.”
A família de São Paulo mostra como a
inflação, aliada à desaceleração da economia, tem reduzido o poder de
compra da classe média nos últimos meses. Agora, esses brasileiros não
só deixam de sair de casa para jantar, como prestam mais atenção às
ofertas e batalham descontos, dão menos importância às marcas,
frequentam menos os salões de beleza e evitam os passeios em shopping
centers. Alguns chegaram a adiar a troca do carro e, a despeito dos
protestos dos filhos, cancelaram a viagem das férias de julho. O cenário
pessimista é compartilhado por empresários e economistas. Na semana
passada, o mercado elevou suas projeções pela quinta vez consecutiva e a
expectativa é que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA, a
medida oficial da inflação no Brasil) encerre o ano em 8,31%. Se o
número provar-se verdadeiro, essa será a maior variação em 12 anos.
Embora os preços nos supermercados e
restaurantes assustem, o que mais pesa para a classe média são as
despesas com habitação. Nesse grupo social, as casas costumam ter mais
equipamentos eletrônicos e lâmpadas. Por isso, gastam mais energia. Não
por acaso, o recente reajuste nas tarifas elétricas atingiu em cheio a
população. De janeiro a abril, segundo o IPCA, a conta de luz subiu 38%.
Considerando só a classe média, esse item aumentou 19% apenas em abril e
47% neste ano, de acordo com o Índice do Custo de Vida da Classe Média
(ICVM), elaborado pela Ordem dos Economistas do Brasil. O ICVM mede a
variação dos preços de 468 itens na Grande São Paulo, mas, segundo seu
coordenador, o economista José Tiacci Kirsten, tem alcance mais amplo,
já que o comportamento não difere muito no interior do Estado.
Na hora de pagar as contas, o aumento
sentido parece muito maior que as estatísticas oficiais. Parte dessa
sensação pode ser explicada pela economia comportamental. O psicólogo
israelense Daniel Kahneman, vencedor do prêmio Nobel de Economia em
2002, afirma que as pessoas tendem a dar mais importância aos eventos
negativos que positivos. No livro “Rápido e Devagar – Duas Formas de
Pensar”, Kahneman cita um experimento para comprovar sua tese. Segundo
ele, uma única barata tira todo o apelo de um pote cheio de cerejas, mas
uma única cereja é incapaz de tornar um pote de baratas mais atraente.
É fácil de entender como o raciocínio se
aplica à economia. Basta colocar lado a lado três produtos com o mesmo
peso: A, B e C. Se o valor de A subir 10%, o de B permanecer estável e o
de C cair 10%, a inflação no período será zero. Contudo, para quem
consome mais o produto A – item, portanto, que terá mais peso na cesta
–, a sensação de que a inflação subiu é muito maior. “Na prática,
famílias com crianças em idade escolar percebem uma inflação mais alta
quando ocorrem aumentos nas mensalidades escolares e famílias com idosos
a percebem com os aumentos dos remédios e planos de saúde”, diz André
Braz, analista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio
Vargas. “Já famílias de baixa renda, aquelas que recebem até 2,5
salários mínimos mensais, notam mais a inflação quando os preços dos
alimentos e das passagens de ônibus urbano ficam mais caras.” Assim,
para chegar a uma média nacional, o IPCA é medido em 13 regiões
metropolitanas e abrange famílias com rendimentos de 1 a 40 salários
mínimos.
Alguns economistas argumentam que um pouco
de inflação não faz mal. Em países estáveis e com economia relativamente
desenvolvida, uma taxa ao redor de 2% e 3% é até saudável para o
crescimento do PIB. Isso porque estimula os investimentos, o aumento dos
salários e o consumo – se um produto ficasse mais barato dia após dia,
não haveria razão para comprá-lo agora, nem investir na compra de um
equipamento, no caso de uma empresa. Mas a questão brasileira é bem
diferente. Quando o índice ultrapassa o limite saudável, os efeitos são
perversos. Segundo o próprio Comitê de Política Monetária (Copom) do
Banco Central, essas distorções podem ser observadas “no encurtamento
dos horizontes de planejamento das famílias, empresas e governos, bem
como na deterioração da confiança de empresários.” Em resumo, corrói o
poder de compra, o consumo e o potencial de crescimento da economia, o
que afeta também a geração de empregos e a renda. É nesse pesadelo que o
País está mergulhado.
Quando fizeram as contas de quanto
gastariam numa noite de diversão no Rio de Janeiro, a produtora de
eventos Raphaela Rodrigues, 32 anos, e o publicitário André Olive, 45,
desistiram de sair na última hora. O valor do ingresso do show (R$ 80
para cada) mais o táxi (R$ 75) e os gastos com bebida seriam um exagero
que não podem mais cometer. Optaram por fazer um jantar em casa. “Tinha
preguiça de cozinhar, mas agora não tem outro jeito”, diz Raphaela.
(Com reportagem de Ludmilla Amaral e Luisa Purchio)
Fotos: Airam Abel/Ag. Istoé, Thiago Bernardes/Frame; Frederic Jean/Ag. Istoé