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sábado, 17 de setembro de 2022

Violações patrocinadas pelo Pretório Excelso - Revista Oeste

Cristyan Costa

Da ação de busca e apreensão na casa de empresários à desmonetização de canais conservadores, confira as leis e os artigos da Constituição que foram ignorados por ministros do STF 


Dispositivos violados:

  1. Artigo 102 da Constituição: Compete ao STF julgar infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”;
  2. Artigo 129 da Constituição: “Compete ao MPF promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; e requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”;
  3. Artigo 5° da Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”;
  4. Parágrafo II do artigo 282 do Código de Processo Penal: “As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público”.

O jurista Dircêo Torrecillas Ramos, membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, lembra que compete ao Ministério Público Federal “apresentar denúncias, dar diligências e exercer o controle externo da atividade policial”, segundo determina o artigo 129 da Constituição. Isso não ocorreu.

“Avalio que houve excessos”, constatou o jurista Ives Gandra da Silva Martins, professor universitário e doutor em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Segundo ele, o conteúdo das mensagens avaliado por Moraes representa mera opinião política. “Empresários não dão golpe de Estado. Quem teria de fazer isso são as Forças Armadas. E as chances de os militares executarem um plano dessa magnitude é igual a três vezes zero.”

O jurista Adilson Dallari afirma que Moraes violou o artigo 5° da Carta Magna. “Ameaça tem de ser real, concreta, viável e suscetível de ser realizada”, observou. “Não se confunde com bravata, que não é crime. Além disso, não compete ao STF abrir inquérito dessa natureza.”

Ivan Sartori, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma que o TSE tem de ser transparente. “Um ‘serviço secreto’ não se coaduna com o sistema democrático, sobretudo diante da postura de Moraes”, observou. “Há a violação do artigo 37 da Constituição, que trata da publicidade, da moralidade, da transparência e da legalidade. Existe um viés autoritário. A Justiça Eleitoral é ser transparente.”

Dispositivos violados:

  1. Inciso IV do artigo 5° da Constituição: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”;
  2. Inciso VIII do artigo 5° da Constituição: “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”;
  3. Inciso IX do artigo 5° da Constituição: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Na terça-feira 13, o TSE proibiu, por unanimidade, o presidente Jair Bolsonaro de usar imagens do 7 de Setembro em peças de propaganda eleitoral. O TSE determinou:

  • Que a Empresa Brasil de Comunicação retire vídeos do canal da TV Brasil no YouTube com trechos dos atos do presidente, sob pena de multa de R$ 10 mil, mas preservasse o material em arquivo até o fim do processo;
  • Que o presidente e o candidato a vice, Braga Netto, fossem intimados a, em 24 horas, parar de veicular qualquer material de propaganda eleitoral que tenha como base as imagens de Bolsonaro nos atos de 7 de Setembro em Brasília e no Rio, sob pena de multa de R$ 10 mil;
  • Que a campanha não produzisse novos conteúdos para a propaganda eleitoral com as ações realizadas no Bicentenário da Independência.

“A medida do TSE violou a liberdade de manifestação do presidente”, constatou Torrecillas. “Todos podem reunir-se pacificamente em locais abertos ao público. Bolsonaro soube dividir os atos em dois: o desfile do Dia da Independência e, depois, sem a faixa presidencial, discursou para apoiadores. Não precisaria proibir o presidente.”

Dallari lembrou que, como justificativa, se alegou que as festividades foram custeadas com recursos públicos. “Na verdade, recursos públicos custearam as despesas da cerimônia oficial de Brasília, onde o presidente compareceu usando a faixa presidencial”. observou. “Nas outras manifestações, custeadas por particulares e por fundos de campanha, o candidato compareceu nessa qualidade. No fundo, o ministro Benedito Gonçalves atendeu a um pedido de Lula, a quem deve sua designação para o STJ.”

Há Há duas semanas, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, determinou que o eleitor deve entregar o celular ou qualquer outro aparelho eletrônico antes de entrar na cabine de votação no dia da eleição para “garantir o sigilo do voto”. Além disso, detectores de metais poderão ser utilizados em situações excepcionais, avaliadas caso a caso pelo juiz eleitoral. Se o eleitor se recusar a entregar o aparelho, cometerá “crime eleitoral”. O juiz eleitoral será avisado e deverá chamar a Polícia Militar.

O inquérito infame já consumiu milhares de páginas, cujo conteúdo permanece em sigilo. Assim, os alvos do carrasco não sabem sequer do que são acusados

“Proibir portar o celular é uma decisão correta e que está prevista em lei, pois preserva o sigilo do voto”, disse Adilson Dallari. “Contudo, ameaçar alguém de prisão por isso é algo ridículo.” Torrecillas completa: “Não vejo motivos para se prender alguém por isso. No máximo, uma advertência.”

Por unanimidade, o TSE determinou a retirada da propaganda eleitoral em que a primeira-dama Michelle Bolsonaro aparece. O material é um vídeo que integra a campanha do presidente Jair Bolsonaro. De acordo com o TSE, a Lei Eleitoral prevê a participação de apoiadores nas peças publicitárias somente em 25% do tempo, o que estaria além no vídeo.

“Normas do TSE limitam o tempo de manifestação de apoiadores”, disse Dallari. “No caso, a alegação é a de que o tempo máximo teria sido ultrapassado. Obviamente, o correto seria cortar o excesso, e não proibir a propaganda inteira. O facciosismo é escandaloso.”

Dispositivos violados:

  1. Inciso VII do artigo 84 da Constituição: “O presidente da República tem de manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos”.

Em 30 de agosto, o TSE mandou a TV Brasil, o Google, o Facebook e o Instagram tirarem do ar vídeos da reunião do presidente Jair Bolsonaro com embaixadores, realizada em 18 de julho. Na ocasião, Bolsonaro criticou as urnas eletrônicas.

“Não há inconstitucionalidade por parte do presidente”, disse Dallari. “Nos termos do artigo 84, inciso VII, compete ao presidente da República manter relações com Estados estrangeiros e seus representantes. Inconstitucional foi a reunião do Fachin com os embaixadores.”

Dispositivos violados:

  1. Artigo 53 da Constituição: “Deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato;
  2. Inciso XII do artigo 84 da Constituição: “Cabe privativamente ao presidente da República conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”;
  3. Súmula IX do TSE: “A suspensão de direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena, independendo de reabilitação ou de prova de reparação dos danos”.

Com base em julgamento do STF, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro cassou a candidatura do deputado federal Daniel Silveira ao Senado. O STF condenou o deputado a quase dez anos de cadeia por críticas contra os ministros da Corte. Silveira, contudo, recebeu um indulto presidencial, que extingue supostos crimes cometidos por ele.

Torrecillas afirma que o parlamentar pode ser candidato nas eleições deste ano por causa do indulto. “Se há um perdão, há a extinção da pena. Se há a extinção da pena, o deputado recupera os direitos políticos”, constatou o jurista. Mais: o artigo 55 da Constituição, parágrafo 2, estabelece que, mesmo que haja uma condenação com uma sentença que transitou em julgado (não cabendo recursos), quem decide sobre a perda do mandato é o Congresso Nacional.”

A deputada estadual Janaína Paschoal, jurista e uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, argumenta que a graça (indulto individual) tem impacto na condenação criminal, e não diretamente nas questões eleitorais. “No entanto, na medida em que a inelegibilidade decorreu da condenação, a meu ver, caindo a condenação, cai a restrição.”

Ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivan Sartori afirma que, quando há clemência do presidente da República, todos os efeitos da condenação, e a própria condenação, são perdoados. “Silveira se torna elegível”, observou. O desembargador Marcelo Buhatem, presidente da Associação Nacional dos Desembargadores, vai na mesma linha. O magistrado lembrou ainda que o ministro Moraes, relator do processo que condenou Silveira, reafirmou em outra ocasião que o indulto é um ato privativo do presidente da República e tem de ser respeitado, “goste-se ou não”.

Buhatem também lembrou o que estabelece a súmula número 9 do Tribunal Superior Eleitoral: “A suspensão de direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena, independendo de reabilitação ou de prova de reparação dos danos.”

Dispositivos violados:

  1. Súmula vinculante 14 do STF: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”;
  2. Inciso LV do artigo 5° da Constituição: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Desde a abertura dos inquéritos inconstitucionais do STF, além de operações da Polícia Federal contra alvos dessas investigações, os advogados das partes não têm acesso aos autos do processo.

“A súmula 14 garante aos advogados dos investigados o acesso aos autos”, constatou Dallari. “Ninguém pode se defender sem saber do que está sendo acusado. A proibição de acesso aos autos viola o inciso LV do artigo 5 da Carta Magna, que garante o direito ao devido processo legal.”

Dispositivos violados:

  1. Artigo 5° da Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”;
  2. Artigo 53 da Constituição (no caso do deputado Daniel Silveira): “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. § 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”.

O deputado Daniel Silveira, o jornalista Oswaldo Eustáquio e o ex-presidente do PTB Roberto Jefferson foram presos por críticas ao STF.

“Silveira não cometeu crime”, disse Dircêo. “Ele manifestou uma opinião. O deputado tem imunidade em razão do cargo que ocupa. Por isso, compete à Câmara dos Deputados decidir o que fazer.” Ainda segundo o jurista, caso o deputado tivesse sido enquadrado no artigo 286 do Código Penal, que prevê punição de três a seis meses por incitação à violência, Silveira poderia cumprir a pena em liberdade.

“Por que vai ser preso agora se, caso fosse condenado por causa disso, cumpriria a pena em liberdade?”, indagou o jurista. “O ministro Alexandre de Moraes tinha de ter comunicado à Casa para que ela decidisse sobre a prisão, se fosse o caso de prisão, porque não é”, acrescentou Torrecillas. “No artigo 53 da Constituição está escrito: deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.”

Sobre Oswaldo Eustáquio, o jurista explicou que, “por ser jornalista e sem foro privilegiado, o processo precisava ser encaminhado à primeira instância”, afirmou. “Só no fim é que o STF seria provocado. Trata-se de um jornalista, um civil, que tem o direito à liberdade de expressão.” Torrecillas lembra que fake news, um dos argumentos usados contra Eustáquio, é um termo subjetivo e difícil de caracterizar. Portanto, frágil no proferimento de uma sentença.

No que diz respeito à prisão de Roberto Jefferson, Ives Gandra Martins classificou de “censura prévia”, que viola o artigo 5° da Constituição.

Dispositivos violados:

  1. Inciso IV do artigo 5° da Constituição: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”;
  2. Inciso XVI do artigo 5° da Constituição: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”;
  3. Artigo 220 da Constituição: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Sugerir a modernização da urna eletrônica e discorrer sobre possíveis efeitos colaterais das vacinas contra a covid-19, entre outros assuntos, se tornaram tabus. Agências de checagem e o consórcio de imprensa tacham reportagens de fake news. Em paralelo, o STF intimida pessoas e até manda prender quem se atreve a abordar esses temas.

“A atuação visando impedir ou dificultar a manifestação do pensamento viola o artigo 5°, inciso IV, e também o inciso XVI, que garante a liberdade de reunião, que pode ser física ou virtual”, disse Dallari. “Além disso, viola o Art. 220, que assegura a liberdade de informação e comunicação social.”

Dispositivos violados:

  1. Inciso IV do artigo 5° da Constituição: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

Em setembro do ano passado, o corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Luis Felipe Salomão, determinou que a rede social GETTR suspendesse repasses de recursos via monetização e de outros serviços a páginas alinhadas ao presidente Jair Bolsonaro.

Entre os alvos estavam os jornalistas Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio. De acordo com o TSE, eles publicaram ameaças à democracia brasileira e são investigados em inquérito que tramita no tribunal. Os valores já repassados aos perfis devem ser direcionados para uma conta judicial.

Alguns dias depois, foi a vez de Bárbara Destefani, do canal Te Atualizei, ser desmonetizada no YouTube. Até hoje, os alvos não tiveram acesso aos autos.

“A decisão do TSE restringiu o alcance da liberdade de expressão”, avaliou Torrecillas. “Há profissionais de imprensa que dependem da monetização para exercer o seu ofício. Os recursos recebidos por meio de vídeos sustentam a atividade dessas pessoas. O que houve, claramente, foi censura.”

Leia também “As pesquisas naufragam nas ruas”

Cristyan Costa, colunista - Revista Oeste


quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O cancelamento de Maurício Souza e a liberdade de expressão agredida

Gazeta do Povo

O cerco à liberdade de expressão, que vive um verdadeiro “apagão” no Brasil, patrocinado até mesmo pelas instituições que têm o dever constitucional de defendê-la, ganhou novo capítulo nesta quarta-feira, quando o jogador de vôlei Maurício Souza foi desligado do Minas Tênis Clube, como consequência de uma campanha de cancelamento promovida contra ele. O atleta, que já era alvo de críticas frequentes por ser apoiador do presidente Jair Bolsonaro, teve seu contrato rescindido unilateralmente pelo clube mineiro após publicações em mídias sociais. Além disso, o técnico da seleção brasileira de vôlei, Renan dal Zotto, afirmou que não há espaço “para profissionais homofóbicos” na equipe, insinuando que Souza não será mais convocado para defender o Brasil em competições internacionais.

Maurício Souza durante partida da seleção brasileira nos Jogos Olímpicos de Tóquio.

Maurício Souza durante partida da seleção brasileira nos Jogos Olímpicos de Tóquio.| Foto: Miriam Jeske/COB

Em uma das publicações, o atleta criticou o uso da chamada “linguagem neutra”, uma criação artificial que viola os padrões da língua portuguesa que, segundo informações de bastidores, estaria presente em uma novela com exibição prevista para o ano que vem; Souza fez o comentário “O céu é o limite se deixarmos! Está chegando a hora dos silenciosos gritarem”. Em seguida, comentando o fato de a DC Comics lançar uma história em que o personagem Super-Homem se assume bissexual, Souza escreveu:A (sic) é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar…”. Depois, Souza publicou uma foto de uma equipe feminina de basquete que conta com um atleta transexual, Gabrielle Ludwig, afirmando: “Se você achar algum homem nessa foto você é preconceituoso, transfóbico e homofóbico. Mais uma conquista do feminismo para as mulheres!” E, por fim, publicou um vídeo defendendo suas posições e seu direito à liberdade de expressão, relatando insultos sofridos.

Classificar as manifestações de Maurício Souza como “homofóbicas” ou “ilegais” é muito mais que uma distorção grosseira do seu conteúdo; é a admissão de que, a partir de agora, há tabus, assuntos que não podem ser nem mesmo discutidos, quanto mais questionados

Quando a campanha de cancelamento já estava em curso, o Minas Tênis afirmou que “todos os atletas federados à agremiação têm liberdade para se expressar livremente em suas redes sociais”, que “não aceitamos manifestações homofóbicas, racistas ou qualquer manifestação que fira a lei”, e que “as opiniões do jogador não representam as crenças da instituição sociodesportiva”. No entanto, em poucas horas, pressionado pelos principais patrocinadores e pela intensificação da pressão dos canceladores, o clube mudou sua postura inicial: primeiro, afastou e multou Souza, pedindo que ele publicasse uma retratação; por fim, anunciou a demissão. 

Assumir como correta a postura dos canceladores significa, por exemplo, que não se pode nem mesmo contestar a adoção da “linguagem neutra” e que ela deve ser simplesmente aceita sem questionamentos, por mais que inúmeros especialistas apontem seu artificialismo e seu caráter de imposição ideológica, ao contrário de diversas outras mudanças que o idioma sofreu ao longo dos séculos, sempre fruto de uma evolução orgânica. Da mesma forma, torna-se “crime” apontar uma verdade evidente que Ludwig é um homem biológico – e pretende-se bloquear o debate sobre a participação de atletas transexuais no esporte feminino, uma discussão que nem mesmo o Comitê Olímpico Internacional considera encerrada, já que a entidade manifestou sua intenção de rever as regras atuais sobre a presença de tais atletas em suas competições. Por fim, na mente dos canceladores, já não se pode nem mesmo criticar o fato de uma empresa de entretenimento atribuir determinada característica a um de seus personagens.

Nenhuma dessas posturas corresponde a homofobia; as manifestações de Souza não se encaixam naquelas condutas criminalizadas pela Lei 7.716, cujos efeitos o Supremo equivocadamente ampliou para incluir ações discriminatórias contra a população LGBT. Nem mesmo o ato descrito no artigo 20 (“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito”) poderia ser aplicado às publicações do atleta, que não advogou nenhum tipo de preconceito, discriminação ou retirada de direitos de determinadas pessoas.

Apenas a extrapolação indevida explica a caracterização de “homofóbicas” dada às manifestações de Maurício Souza – ou por meio da deturpação das intenções do atleta em suas publicações específicas, ou por meio de um fenômeno mais generalizado que previmos já em março de 2019, quando o julgamento sobre a Lei 7.716 no Supremo ainda não estava concluindo:   
a proibição completa da crítica a comportamentos, algo sem precedentes na história das democracias ocidentais. Cada novo episódio de perseguição ou cancelamento deixa mais claro que este é o objetivo final de parte da militância identitária: calar quem quer que considere equivocadas determinadas práticas e que já não se resumem ao comportamento homossexual propriamente dito – daí, por exemplo, a revolta contra a crítica à “linguagem neutra”.
Em março de 2019, a Gazeta do Povo afirmou: “Quando se vai além da criminalização do preconceito para estabelecer uma categoria de ‘crimes de opinião’, ignora-se completamente o fato de que, em todas as democracias sérias, não há comportamento humano que esteja imune ou blindado à crítica. O entendimento universal é o de que mesmo as condutas humanas mais nobres e quase que universalmente aceitas podem ser alvo de discordância, de crítica e de uma apreciação negativa, desde que não se caia no insulto, na agressão ou na violência”. 
 
Insulto, agressão e violência são tudo o que não existe nas manifestações que levaram ao cancelamento de Maurício Souza. 
A agressão e a violência reais são aquelas cometidas contra a liberdade de expressão do atleta, e são perpetradas por aqueles que não toleram a discordância, a ponto de buscarem inviabilizar completamente a vida de uma pessoa, pressionando para que lhe seja tirado até mesmo seu ganha-pão.

Editorial - Gazeta do Povo


domingo, 14 de fevereiro de 2021

Fogo na camisa amarela - Nas entrelinhas

Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro?  Ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração seria uma espécie de suicídio coletivo

[Felizmente,  um ano sem carnaval; que falta faz? NENHUMA. O número de mortes será menor, o consumo de drogas cairá ainda que pouco, a imoralidade, a corrupção moral (não toleramos a corrupção pública = a que envolve dinheiro - mas aceitamos a corrupção moral que é a mãe de todas as corrupções);  cenas ofensivas à moral e aos bons costumes a depravação, os atos obscenos, as crianças presenciando imoralidades, o exibicionismo repugnante (lembram do golden shower?)o desrespeito aos valores religiosos,o vilipêndio dos símbolos cristãos. 
Vejam a imagem abaixo. Pensem. O recado é claro]
 

 

[ A mudança que ilustra esse recado não foi realizada pelos que se julgam Supremos e pretendem autorizar até quem deve ter o direito de nascer.

Um alerta: desnecessário, mas para perfeito entendimento dos que quando desenhamos não conseguem compreender, que o 'coisa ruim', o de vermelho, está muito triste pela não realização do carnaval 2021.

A mudança mostrada foi realizada por DEUS, o SER SUPREMO, que realmente pode tudo.]

O carnaval sempre foi um momento de inversão de papéis, de questionamento das normas, de fuga do padrão da vida cotidiana e da libertação da repressão. Neste ano, não. Ainda vamos levar algum tempo para ter a verdadeira dimensão do que está ocorrendo, mas, talvez, o carnaval deste ano seja um momento de choque da dura realidade, que é a crise sanitária pela qual o mundo está passando, agravada pela incompetência e pelo negacionismo do governo. Oxalá, no próximo carnaval, a maioria da população esteja imunizada contra a covid-19.

No começo da pandemia, imaginava-se que o carnaval de 2021 seria um dos maiores de todos os tempos, com a população indo às ruas se divertir, superada a peste. Estaríamos vivendo momentos felizes, de muita contestação aos tabus da nudez e da sensualidade, de ironias e críticas escrachadas aos governantes e, como não poderia deixar de ser, ao presidente Jair Bolsonaro. Feminismo, racismo, diversidade, exclusão, ["Quanto maior a ênfase, por exemplo, nas teorias de gênero, maior a homofobia; quanto mais igualdade de gêneros, mais cresce o feminicídio; quanto mais se combate a discriminação racial, mais ela se intensifica; quanto maior o ambientalismo, mais se agride o meio ambiente; e quanto mais forte o indigenismo, pior se tornam as condições de vidas de nossos índios", relatou na entrevista.] os temas característicos do debate contemporâneo, numa sociedade pluralista e democrática, estariam sendo tratados com bom humor e muita sagacidade pelo povo nas ruas, cantando marchinhas e sambas.

Por incrível que possa parecer, o carnaval — essa festa tão desvairada — também é um momento de conscientização da população. É quase impossível na vida de um brasileiro não ter visto um desfile de escola de samba, não ter saído num bloco ou participado de um baile de carnaval no qual não houvesse ruptura ou transformação de costumes. É uma festa muito ambígua, na qual a fuga da realidade funciona como um espelho da sociedade, quando a velha senhora que passa roupa para fora se veste de luxuosa baiana, a madame vira figurante numa ala de escola de samba, o jovem desempregado brilha na bateria, a socialite leva uma bronca do bombeiro hidráulico por atrasar o desfile e o galã da novela arrisca um desengonçado samba no pé, sendo ele mesmo, e não o seu personagem.

O carnaval substituiu o entrudo, que era uma festa embrutecida, na qual o povo tomava as ruas para jogar farinha, baldes d’água, limões de cheiro e até lama e areia uns nos outros. Ou seja, um avanço civilizatório. Roberto DaMatta, o antropólogo estudioso dos foliões e dos malandros, sempre destacou que o carnaval não é apenas um momento de alienação da realidade, é um espaço de transformação dos padrões da sociedade. O Rio de Janeiro, quanta ironia, teve um prefeito que não gosta de carnaval e não conseguiu se reeleger. Temos um presidente da República que também não gosta e que, talvez, se regozije pelo fato de o povo não ter tomado as ruas para fazer troça das autoridades e de si próprio.

Folião de raça
Um dos maiores carnavais de todos os tempos, segundo os historiadores, foi o de 1919, no Rio de Janeiro, ano de estreia do Cordão do Bola Preta, que havia sido fundado em dezembro do ano anterior e, hoje, é o maior bloco do país, arrastando milhões pelo centro do Rio de Janeiro no sábado de carnaval, o que deveria ter acontecido ontem. Aquele foi um carnaval no qual a população comemorou o fim da gripe espanhola, a epidemia que matou 15 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. Neste carnaval, a média de óbitos na cidade está em 158 mortes por dia, sendo 234 óbitos e 5,5 mil casos de contaminação nas últimas 24 horas. Já são 551 mil casos no estado. [naquela época se levava semanas para ir do Rio ao Recife; meses para  realizar o percurso Europa x Brasil; imagine se uma pandemia daquele porte, com seu elevado índice de letalidade e contágio, ocorresse nos dias de hoje = em que o contaminado  hoje pela manhã,  pode estar amanhã no outro lado do mundo contaminando.]

Não é privilégio de cariocas e fluminenses. No Distrito Federal, a covid-19 matou 4.198 pessoas, de um total de 247 mil infectados; oito vezes mais do que acidentes e homicídios. Em Belo Horizonte, foram 16,5 mil mortes, de um total de 798 mil infectados. Em São Paulo, 55 mil mortes, com 1,9 milhão de infectados. Na Bahia, 10,6 mil mortos para 623 mil infectados. Em Pernambuco, 10,6 mil mortos para 277 mil infectados; no Amazonas, são 9,7 mil mortos para 292 mil infectados. Estamos vivendo a rebordosa das campanhas eleitorais e das festas de fim de ano. [por conveniência muitos atribuem o acréscimo de agora a uma segunda onda = bem mais conveniente que atribuir às eleições de novembro .p., e os festejos de fim de ano.]

Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Agora, com a segunda onda da pandemia, ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração e contato físico seria uma espécie de suicídio coletivo. Por isso, mesmo que a festa seja em casa e nas redes sociais, neste ano, o carnaval não valeu. Melhor ficar em casa, cantar A Jardineira e pôr fogo na camisa amarela, como aquele folião de raça de Ary e Elizeth, na quarta-feira de cinzas.

PS: até quinta-feira! Luiz Carlos Azedo - Nas Entrelinhas - Correio Braziliense