Teria sido possível que a Operação Lava-Jato prosperasse sem que certos atropelos à lei tivessem ocorrido?
O Brasil
está sendo passado a limpo. O grau de corrupção ganhou proporções
inauditas, permeando as instituições. Os exemplos mais variados mostram o
quanto ela adentrou o Executivo, o Legislativo e, mesmo, o Judiciário,
embora deste último tenham nascido as medidas moralizadoras e punitivas.
O sistema partidário foi, certamente, o mais atingido, perdendo,
inclusive, as suas condições de representatividade.
O combate à
corrupção foi — e está sendo — capitaneado por um grupo de juízes,
desembargadores, promotores e procuradores, contando com o apoio
decisivo da sociedade e da imprensa e dos meios de comunicação em geral.
Poderosos estão sendo julgados e condenados, alguns estando já presos. Do
ponto de vista social, a transformação é imensa, pois não são ladrões
de galinha que estão pagando por pequenos delitos, mas os próprios
corruptores das instituições nacionais.
Acontece, contudo, que um
processo de tal tipo não se faz sem atropelos e efeitos colaterais
importantes. Prisões preventivas são utilizadas abusivamente ao arrepio
de suas condições, [a Constituição Federal proíbe taxativamente à pena de prisão perpétua inclusive a vedação constitucional se inclui entre as 'cláusulas pétreas', mas, os juízes podem, desde que entendam conveniente e sem necessidade de fundamentar, decretar prisão preventiva sem prazo determinado o que permite que qualquer indivíduo pode, sem julgamento e sem motivação detalhado, passar anos e anos presos a título de prisão preventiva - se ao ser julgado for absolvido nada será feito para reparar os meses e mesmo anos que esteve preso 'preventivamente'.] indivíduos são encarcerados por longo tempo antes de
serem efetivamente condenados, e punições, sob a forma de condenações
públicas, tornam-se a regra.
Com razão, muitos se insurgem contra
atos que não asseguram devidamente a defesa dos acusados e violam
garantias individuais, constitucionalmente asseguradas. Não são pessoas
que possam ser vistas de uma forma maniqueísta como defensores da
impunidade. A questão, porém, deve ser vista de uma outra
maneira. Teria sido possível que a Lava-Jato prosperasse sem que certos
atropelos à lei tivessem ocorrido? É plausível que, numa guerra, as
regras de civilidade e convenções internacionais sejam estritamente
seguidas?
Se o contexto é de limpeza da cena pública, a varredura
deverá ser necessariamente rigorosa, obedecendo à sua própria lógica e
condições. Se a cidadela da impunidade deve ser conquistada, os meios
utilizados deverão levar em consideração adversários encastelados em
suas posições de poder. O atual sistema legal, até agora, vinha
apenas assegurando a impunidade dos corruptos. Esta era a regra com
todas as suas justificativas jurídicas correspondentes. Tomemos o
caso do foro privilegiado. Trata-se de instituto vigente que tinha um
fim nobre, a saber, assegurar o exercício das atividades parlamentar e
ministerial contra qualquer tipo de intervenção política arbitrária.
Ocorre que ele terminou sendo desviado de sua função, tornando-se um
abrigo dos que querem fugir da Justiça.
Observe-se que muitos
políticos nem entram no mérito das acusações que contra eles são
lançadas, como se isso não tivesse a menor importância. Atêm-se,
somente, a pequenas considerações legais, respaldadas no foro
privilegiado e ressaltando que não foram julgados.
Ocorre que não
foram julgados e eventualmente condenados por usufruírem precisamente
do foro privilegiado, que funciona como um escudo da impunidade. Note-se
que as condenações em primeira instância da Lava-Jato, em Curitiba, e
referendadas pela Segunda Instância do TRF-4, em Porto Alegre, já
ultrapassaram a centena. A Justiça, nesta esfera, está sendo, portanto,
feita.
No Supremo Tribunal Federal, contudo, não há nenhuma
condenação dos que gozam de foro privilegiado. A sua morosidade termina
por consagrar a impunidade. A justificativa de que a Procuradoria-Geral
da República não está fazendo o seu trabalho a contento somente agrava a
situação, pois também ela estaria consagrando a impunidade. Artifícios
legais e tergiversações não devem ser instrumentos da injustiça. Tomemos
o caso dos vazamentos. Evidentemente, não são eles inocentes, mas
perseguem certos objetivos. São seletivos, escolhendo determinados alvos
e, neste sentido, são arbitrários. Qualquer um pode ser atingido a
qualquer momento. Inocentes podem ser atingidos e sua honra, destruída,
sem que tenham sido julgados.
Exemplos disto são certas delações,
como a de Cláudio Melo Filho. Algumas das acusações — outras são
precisas — estão baseadas em meras impressões, sem embasamento
fidedigno. Provas materiais deverão ser apresentadas, pois, sem elas,
alegações serão meramente alegações. Ocorre que elas terminam se
tornando a base de matérias jornalísticas, superficialmente feitas.
Assim, procede-se à contagem de quantas menções foram feitas a certos
políticos. Algumas alcançam dezenas.
Entretanto, uma leitura
acurada do documento mostra que o seu fundamento consiste em referências
do seguinte tipo. Fulano foi recebido por sicrano (uma menção), este o
convidou para sentar (segunda), ofereceu-lhe um cafezinho (terceira) e
assim indefinidamente até o aperto de mãos na despedida, perfazendo
dezenas de menções. A questão, porém, deve ser também abordada em
outra perspectiva. Considerando que as instituições vigentes têm
consagrado a impunidade, teria sido a Operação Lava-Jato efetiva sem os
vazamentos? Não cumprem eles uma função saneadora da vida pública? Se o
segredo da instrução fosse efetivamente assegurado, estariam os
poderosos sendo investigados e condenados?
Os vazamentos são um
efeito colateral de instituições que não vêm cumprindo com suas
finalidades. Se o sistema jurídico estivesse voltado realmente para a
condenação dos políticos que usufruem do foro privilegiado, a
disfuncionalidade dos vazamentos não existiria, pela simples razão de
que seriam desnecessários.
Os vazamentos e sua repercussão
jornalística cumprem com um papel essencial, o de esclarecerem a
sociedade sobre os seus representantes. Sem eles, não teriam acesso à
informação, nem consciência de quem os dirige. A consciência social e
nacional seria capenga. Basta que as condições que tornam
necessários os vazamentos sejam suprimidas para que estes desapareçam ou
se tornem irrelevantes. Dentre elas, o fim do foro privilegiado como
hoje existe, a morosidade dos julgamentos e a eliminação do segredo de
processos de agentes públicos que devem prestar contas a toda a nação.
Fonte: Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - O Globo