No
discurso, o partido se diz o "legítimo" representante dos
trabalhadores. Na prática, o que se constata é que a
população de menor renda é a mais prejudicada pelo desastre econômico promovido
pelos governos petistas
No folclore político nacional, atribui-se ao mineiro Gustavo
Capanema (1900-1985), ministro da Educação de Getúlio Vargas no Estado
Novo e depois deputado federal pelo antigo PSD e pela Arena, a autoria de
uma frase sábia. “Em política, o que vale é a
versão e não o fato”, pontificou
Capanema, ao pedir que o jornalista Carlos Castello Branco (morto em 1993)
desse novas tintas a uma história que publicara, para não deixar o governo tão
mal.
Embora
tenha sido cunhada há décadas, a frase de Capanema serve como uma luva
incômoda para os tempos atuais. Hoje, talvez mais que em qualquer outro
momento da história recente do país, a ideia de que é possível construir uma
narrativa – para usar o termo da hora – sem base na realidade virou uma panaceia, para o governo tentar se livrar de todo e
qualquer problema que apareça pela frente.
Na semana
passada, em Brasília, a presidente Dilma Rousseff emitiu novos sinais de que as manobras diversionistas se
transformaram praticamente em política de Estado. Dilma aproveitou uma
reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – um órgão
consultivo formado por 90 representantes da sociedade civil – para anunciar
um pacote de ampliação de crédito. O remédio, que inclui R$ 83
bilhões em novas linhas de crédito, deverá ser inócuo. Primeiro, porque,
diante das incertezas sobre o nível de atividade econômica nos próximos meses, não
há demanda por mais crédito, de acordo com o presidente do Bradesco, Luiz
Carlos Trabuco Cappi, um dos integrantes do Conselhão e “padrinho”
do ex-ministro Joaquim Levy na Fazenda. Depois, porque será
preciso mais que quimeras para recuperar a confiança perdida pelo governo nos
últimos anos e despertar o “espírito animal” dos empresários,
considerado essencial para alavancar os investimentos. “A confiança só vai
voltar quando o governo fizer a parte dele no ajuste e equacionar o rombo nas contas
públicas. Do jeito que está, com um deficit anual na faixa de 10% do PIB
(o Produto Interno Bruto), todo mundo fica intranquilo”, diz o economista e
consultor Luís Paulo Rosenberg, da Rosenberg Part¬ners, ex-assessor especial da
Presidência da República no governo Sarney.
Dias
antes da reunião do Conselhão, durante a cúpula de países latino-americanos
realizada em Quito, no
Equador, Dilma afirmou: “O Brasil não parou, nem vai parar”. Como se a retração da economia,
estimada em 3,8% em 2015 e em 3% neste ano, fosse mera fantasia do Pessimildo –
o personagem ranzinza que previa desastres econômicos, criado por seus
marqueteiros na campanha eleitoral. Entre todas as manobras do governo para
inflar sua atuação, uma se destaca: insistir na fábula
segundo a qual a política econômica praticada desde o segundo mandato de Lula e
aprofundada na gestão de Dilma é favorável aos mais pobres. Mesmo diante
do drama de milhões de brasileiros, afetados pela crise, com efeitos
perversos nas faixas de menor renda, o governo continua
a sustentar, com a contribuição entusiasmada de Lula, do PT e de seus
parceiros, o discurso de que é o grande defensor dos fracos e oprimidos.
“Essa coisa de política para favorecer pobre virou coisa de piadista”,
afirma o economista e consultor Paulo Rabello de Castro, da RC Consultores,
autor do livro O mito do governo grátis (Ed. Edições de Janeiro).
Por
uma ironia cruel, depois de 13 anos no governo, o PT e seus aliados, que se consideram como legítimos
representantes dos trabalhadores, não levaram a classe operária e os
descamisados ao paraíso. Os sinais de que os menos favorecidos estão pagando a
conta mais salgada pelos erros da política econômica no primeiro mandato de
Dilma pipocam por todos os lados (confira os gráficos ao final desta
reportagem):
• A
inflação nas faixas de baixa renda, medida pelo INPC, calculado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), chegou a
11,3%, enquanto o IPCA, que reflete a inflação oficial, foi de 10,7%.
Segundo
cálculos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), a alta
média de preços para as classes D e E foi ainda maior, de 13,5%;
• O
desemprego atingiu índices alarmantes. Em 2015, até outubro, de acordo com o
IBGE, 2,6 milhões de trabalhadores perderam o
emprego e 9 milhões estão desempregados. Só
na construção civil, foram quase 500 mil postos a menos no ano passado,
segundo o Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo. Até março, pelas projeções dos analistas, o número de
desempregados chegará a 10 milhões de pessoas. No mercado formal de
trabalho, ocorreu o fechamento de 1,54 milhão de vagas em 2015, pior resultado
desde 1992, quando esse indicador foi criado;
• Em
2015, pela primeira vez em dez anos, a renda da população caiu. O ganho médio real (descontada
a inflação) teve uma queda de 3,7% nas
principais regiões metropolitanas do país, conforme o IBGE, passando de R$ 2.353 para R$ 2.265. Estimativas do Instituto
Brasileiro de Economia (Ibre), ligado à Fundação Getúlio Vargas, apontam
que, em 2020, a renda per capita será a mesma de 2010;
• Um
estudo do Bradesco, com base em dados do IBGE, revela que, em 2015, até novembro, quase 4 milhões de pessoas da classe C voltaram às classes D
e E. Outra pesquisa, realizada pela Fecomercio, estima que 10 milhões de pessoas deverão deixar a classe C
até 2017, engrossando a base da pirâmide.
Até na
educação se pode constatar o impacto da crise entre os mais pobres. Em 2015, os novos contratos do Fundo de Financiamento Estudantil
(Fies), dirigido à baixa renda, ficaram em 311 mil, embora a demanda
tenha sido quase o dobro, pouco mais da metade de 2014. Neste ano, as
projeções são que o número de novos contratos deverá ficar próximo ao de 2015. O encolhimento da renda já levou as faixas de menor poder
aquisitivo a mudar também as compras no supermercado, segundo uma
pesquisa da Kantar Worldpanel, que acompanha os hábitos dos consumidores.
Os
produtos mais afetados foram leite pasteurizado e fermentado, refrigerantes e
sucos, além de salgadinhos e sobremesas. Não é de estranhar que o índice de satisfação dos
brasileiros com a vida tenha atingido o mínimo histórico no final de 2015, como
revela uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), em especial
nas faixas de renda de 0 a 2 salários mínimos por mês. “Quando há
um desequilíbrio macroeconômico, os custos em termos de renda e emprego são
drásticos e sempre sobra mais para os mais pobres”, diz o economista
Bernard Appy, ex-secretário de Política Econômica no governo Lula. “A culpa dessa situação, que prejudica o país e,
principalmente, os mais pobres, é 100% do governo”, afirma o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre.
Apesar de
os dados oficiais ainda não terem captado um aumento da desigualdade, exceto na Região Sudeste,
algumas pesquisas acadêmicas já detectaram o efeito da crise também neste
campo. Um levantamento feito pelo professor Sergei Soares, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao governo federal, mostrou que a
desigualdade aumentou perto de 2% no primeiro semestre de 2015. Para o IBGE, o diferencial entre os salários dos trabalhadores mais e
menos qualificados cresceu 5,3% no segundo trimestre do ano passado em relação
ao mesmo período de 2014. Como a crise se aprofundou depois disso e
deverá prosseguir em 2016, o aumento da desigualdade deverá aparecer de forma
bem mais evidente nas estatísticas, mais cedo ou mais tarde.
Por uma
ironia cruel, depois de 13 anos no governo, o PT e
seus aliados, que se consideram como legítimos representantes dos
trabalhadores, não levaram a classe operária e os descamisados ao paraíso.
Ao contrário. Apesar de o PT e outros partidos da base aliada do governo no
Congresso Nacional atribuírem a crise às medidas de austeridades adotadas pelo
ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy, o estrago antecedeu sua passagem por
Brasília em pelo menos dois anos. Ainda que os danos
só se tenham revelado plenamente ao longo da gestão de Levy, quando não dava
mais para maquiar o rombo bilionário nas contas públicas, os
primeiros sinais da debacle já podiam ser captados desde o final do governo
Lula, em 2010.
O estouro
foi retardado pelos anabolizantes injetados em doses cavalares na economia pelo então ministro da Fazenda,
Guido Mantega. Suas ações foram estimuladas por Dilma,
na época ministra da Casa Civil e já candidata à Presidência, e pelo próprio
Lula, que surfava no boom das commodities, cuja popularidade estava nas
nuvens. Levy, portanto, pode até ser acusado de não ter ministrado o remédio
correto para tirar o Brasil do atoleiro, mas não de ser o responsável por ele.
“O governo fez uma série de escolhas que acabaram resultando na grave crise
que o país vive hoje. Em vez de tratar o câncer, ele deu morfina para o doente.
Agora, o dilema é pagar a conta hoje ou deixá-la para depois, quando ela estará
bem mais alta”, diz o economista Marcos Lisboa.
No
primeiro mandato de Lula, a coisa até que andou relativamente bem, para
surpresa dos mais céticos. O trem começou a descarrilhar mesmo após a crise
global de 2008. Depois do sucesso obtido para amenizar
o impacto da crise no país, o governo manteve as medidas de estímulo à
economia que havia adotado, ignorando todos os alertas de que isso iria
gerar um forte desequilíbrio mais à frente. Lula pisou fundo no
acelerador, ampliando o uso de recursos públicos para alavancar a economia.
Deu reajustes generosos ao funcionalismo e aumentos
reais para o salário mínimo, que indexa os benefícios de menor valor
dos aposentados.
O resultado imediato foi espetacular, com crescimento de
7,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010. A renda cresceu, puxada pela
alta das commodities lá fora e pelo crescimento da China – havia lastro para
aumentar os benefícios sociais. Uma nova classe média emergiu, alimentando
a esperança de que o Brasil poderia, enfim, unir-se ao clube dos países
desenvolvidos. Isso iludiu muita gente bem-intencionada. “No governo Lula,
isso tinha sustentação, porque o Brasil vivia um período de vacas gordas. Como
deu certo com o Lula, eles acharam que a política econômica ‘da direita’ não
valia nada e a deixaram de lado”, diz Rosenberg. “Eles veem o resultado que alcançaram como uma obra do PT, mas
foi uma obra da China. Se a gente olhar o que aconteceu em outros
países, como Peru, Bolívia e México, que são exportadores de commodities, como
o Brasil, vai ver que aconteceu algo muito parecido lá durante a alta das
commodities. Só que eles se prepararam bem melhor do que nós para enfrentar o
revertério”, afirma Paulo Rabello de Castro.
Inebriado
com o sucesso e acreditando ter descoberto o que acreditava ser uma alternativa
petista para a política econômica liberal, Lula decidiu manter a fórmula. Quase no fim de
seu governo, interveio no setor de petróleo, dificultando os investimentos
estrangeiros e tomando medidas protecionistas para os investimentos na
Petrobras. Depois, no primeiro mandato de Dilma, o
governo ampliou a concessão de benefícios a alguns setores, oferecendo
subsídios sem transparência no Orçamento e desonerações sem muito critério,
para tentar manter a bicicleta rodando. Ao mesmo tempo,
para evitar o aumento da inflação, Dilma segurou os preços da
gasolina e da energia elétrica e deu um corte profundo nos juros, sem
nenhuma razão aparente para fazê-lo.
Naquela
altura, a inflação já mostrava suas garras, alimentada pelo aquecimento do
mercado de trabalho e do consumo. E, com a queda nos preços das
commodities, a arrecadação do governo, já afetada pelo corte tributário
seletivo promovido em anos anteriores, mergulhou profundo. Mesmo assim, numa atitude meio camicase, Dilma continuou
com o pé na tábua. Apostava que o nível de atividade voltaria a crescer
rapidamente. Mas, ao contrário do que o governo pretendia, isso acabou não
ocorrendo, abrindo um buraco enorme nas finanças públicas. “O caminho do
inferno está cheio de boas intenções. Você vê o bom efeito, mas não o que pode
dar errado”, afirma Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica na
gestão de Fernando Collor. “É impossível fazer essas bobagens sem que os
pobres paguem o preço”, diz Samuel Pessôa.
Para não
emitir um sinal aos analistas de que havia perdido o controle de suas contas, o
governo realizou diversas operações de contabilidade criativa, que se
tornaram conhecidas como pedaladas, falseando o verdadeiro
resultado do Orçamento. Isso agravou a crise de credibilidade do governo, que
já havia deslanchado desde o corte forçado dos juros, em 2011 e 2012, e seus
efeitos se estendem até hoje. A crise de confiança paralisou os investimentos
privados, principais geradores de emprego, e exauriu o caixa do Tesouro para a
realização de investimentos públicos. “Todas as medidas que o governo tomou
tinham a premissa de aliviar o impacto no curto prazo a um custo do agravamento
da crise no médio e no longo prazo”, diz o economista Marcos Lisboa
presidente do Insper, escola de negócios de São Paulo, e ex-secretário de Política
Econômica no primeiro mandato de Lula.
Num
quadro econômico tão preocupante, recorrer, em qualquer circunstância, à máxima de Gustavo Capanema certamente não ajuda o governo nem contribui
para o aumento da confiança. É só ver a baixa popularidade de Dilma nas
pesquisas, nas quais ela aparece com apenas 10% de aprovação.
Ao tentar
criar versões mais adocicadas da realidade, Dilma, Lula, o PT e seus aliados
acabam dificultando ainda
mais a retomada do desenvolvimento, em vez de contribuir para melhorar o
baixo-astral generalizado. “Enquanto houver desconfiança em relação ao
Brasil, o pobre vai sofrer porque o empresário não investe, não gera emprego e
a atividade econômica vai minguando, ampliando o desemprego”, afirma
Rosenberg. “Se a gente tiver mais um ano de recessão
tão dura quanto a de 2015, com inflação alta, o PT não só vai acabar de
implodir seu legado de bem-estar social, mas também o legado anterior, da
estabilidade econômica”, diz Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto
de Economia Internacional, em Washington. Talvez, se Dilma reconhecesse com
humildade seus erros e limitações, o país tivesse mais chance de sair do buraco
ainda em seu governo.
Caso ela fique na Presidência até o fim do mandato. Na
reunião do Conselhão na semana passada, no entanto, todos os sinais foram em
outra direção: de que a política econômica que prejudica principalmente
os mais pobres, será mantida.
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