"Desde o atentado contra Charlie Hebdo, em
janeiro de 2015, sete atentados ensangüentaram o país e 250 pessoas foram
assassinadas."
Desta vez não houve só um dia de unidade nacional. Horas depois do bestial atentado em Nice, que ceifou a vida de 84 pessoas inocentes (inclusive 10 crianças) e deixou 202 feridos (16 entre a vida e a morte até o momento de escrever este artigo), a oposição
acusou o presidente socialista François Hollande, e seu primeiro-ministro
Manuel Valls, de haver cometido os graves
erros em matéria de segurança pública que desembocaram nesta nova tragédia.
Oito
horas antes do atentado, ignorando o que um fanático islâmico estava preparando
em segredo, François Hollande havia se mostrado
otimista durante uma coletiva de imprensa. A jornada do 14 de julho, que
comemora a Revolução Francesa, transcorria bem. O imponente desfile militar nos Campos Elíseos havia sido, como sempre,
um sucesso. Hollande anunciou aos jornalistas que estava disposto a pôr
fim, em 26 de julho próximo, o estado de emergência que havia decretado após os
atrozes atentados de 2015 em Paris. O chefe de Estado
estimava talvez que a ameaça terrorista estava mais ou menos sob controle,
pois os desfiles dos dias e semanas anteriores e, sobretudo, as concentrações
festivas de fanáticos de futebol (nas fan zones) em várias cidades,
durante o campeonato europeu, não haviam sido atacadas
graças aos dispositivos de segurança deslocados, e só havia que lamentar
as destruições e violências anti-policiais e “anti-capitalistas” durante as
manifestações da central sindical comunista (CGT), contra um projeto de lei
trabalhista.
Tal
confiança havia feito com que, além disso, o
governo suspendesse discretamente, desde maio passado, as detenções administrativas e as invasões de domicílios e
veículos dos indivíduos assinalados pelas autoridades como suspeitos de
radicalização islâmica. Hollande também advertiu que ia reduzir de 10.000 para 7.000 o número de soldados
da Operação Sentinela que patrulham as cidades.
Baseado
na errada caracterização da ameaça, esse otimismo beato
despencou às 10 e 28 minutos da noite de 14 de julho, quando sobreveio o
que muitos temiam: um novo atentado
islâmico de massas. Um tunisiano de 31 anos que vivia em Nice, Mohamed
Lahouaiej Boulhlel, que havia passado desapercebido pelos serviços secretos, lançou bestialmente um caminhão de 18 toneladas contra a
multidão que caminhava tranqüilamente pelo Passeio dos Ingleses, a maior
avenida da cidade, paralela à praia, ao final de um espetáculo de fogos de
artifício. Em poucos segundos, Nice passou de um
momento de festa popular republicana a um pesadelo de crueldade inaudita.
O
caminhão terminou sua carreira assassina de dois quilômetros quando três
policiais conseguiram abater a tiros o “soldado do
Estado Islâmico”, como essa entidade o definiu ao reivindicar essa matança
no dia seguinte. Assim, a França foi varrida de novo por uma onda de dor,
indignação e fúria, como havia acontecido após os atentados islâmicos de
janeiro e novembro de 2015.
Imediatamente,
o presidente Hollande decretou três dias de luto
nacional, prolongou o estado de urgência, chamou as reservas e disse que
reforçaria a intervenção francesa na Síria e Iraque. Porém, muitos
consideram que esse plano era a repetição do anunciado em novembro e não
respondia às falhas de segurança interna reveladas pelo ataque em Nice.
Como esse caminhão pôde chegar até esse lugar e
investir contra as pessoas sem ser detido desde o começo? Muitas testemunhas interrogadas
por repórteres de televisão afirmam que havia pouca
vigilância policial e que os obstáculos para a passagem de veículos eram
insuficientes. Bernard Cazeneuve, o ministro do Interior, aduziu com grande frieza que essa avenida estava sim
protegida, pois havia “64 policiais nacionais, 42 policiais
municipais e 20 militares”. Falso,
replicou Christian Estrosi, ex-prefeito da cidade e presidente da região Paca,
que citou esse ministro por não ter protegido bem esse lugar.
Na
véspera do ataque Estrosi, um dirigente dos Republicanos, partido que preside o
ex-mandatário Nicolas Sarkozy, tinha enviado uma carta ao presidente Hollande
para lhe pedir que traçasse um “grande plano de urgência para melhorar as
condições de trabalho dos policiais e lhes dar meios para agir”. Havia lhe exigido deixar de lado o “tempo das
homenagens” e passar ao “tempo da ação”.
Em sua carta, Estrosi precisou: “Devemos suprimir os freios dogmáticos e
ideológicos que obstaculizam a utilização de novos meios tecnológicos” na luta anti-terrorista, como os equipamentos de
reconhecimento facial.
Sublinhou entre outras coisas que a polícia municipal continua trabalhando
sem armas e sem poder consultar os fichários informáticos da polícia nacional.
Além disso, denunciou o “clima de ódio” que existe
em certos setores contra as forças da ordem, o que havia chegado a seu
paroxismo em 13 de junho passado, quando um muçulmano penetrou na residência de
um casal de policiais, em Magnanville, e os assassinou na frente de seu bebê,
antes de ser abatido pela força pública.
Ante a amplitude da catástrofe de Nice, Manuel Valls adotou um ar
marcial. Disse
que o país está em guerra e que terá que agüentar, pois haverá novos
atentados durante um longo período, o que foi interpretado por alguns como a
posição fatalista de alguém que é incapaz de propor soluções efetivas a curto
prazo. Sua frase posterior “não aceito críticas”, aumentou as tensões
com a oposição à qual ele havia acusado de lançar “polêmicas vãs” e
querer “dividir a opinião pública”. “Se este governo não aceita
crítica é porque está esgotado”, replicou o deputado George Fenech, do
partido gaullista. “Os franceses não querem ver mais inocentes e famílias
massacradas. Sentem que os poderes públicos nem conseguem protegê-los, nem pôr
os terroristas fora de combate”, concluiu. Fenech havia presidido, com o
deputado socialista Sébastien Pietrasanta, a comissão
parlamentar que investigou o que havia ocorrido em matéria de terrorismo desde
janeiro de 2015. “Durante nossas audiências, os chefes dos serviços
secretos reconheceram que haviam fracassado. Há muitas falhas na vigilância dos
terroristas. É urgente mudar de enfoque”, asseverou.
Porém, esse informe e suas 40 propostas foram
rechaçadas pelo executivo. Entre as reformas que essa comissão pede está a criação de uma Agência Nacional de Luta
contra o Terrorismo, com a fusão dos diversos serviços de inteligência,
nomear um chefe do anti-terrorismo, criar uma base de dados central e se
inspirar no trabalho anti-terrorista de países como Israel e Estados Unidos. Um
dia depois de havê-lo recebido, o ministro Cazeneuve objetou tudo isso dizendo
que o dispositivo atual era o adequado. “Não podemos aceitar que o ministro
que carrega a mais pesada responsabilidade pelo ocorrido em 2015 venha nos
dizer ‘tudo o que vocês fazem não me interessa’. Com sua atitude ante nossa
comissão ele põe em dúvida o papel do controle parlamentar sobre o executivo”,
afirmou Fenech.
Dias
antes do ataque em Nice, essa comissão
havia enfurecido o governo pois revelou que em 13 de novembro passado, ante o ataque do Bataclan, onde 130 pessoas foram
massacradas, os militares da Operação
Sentinela que chegaram ao
local não intervieram pois, disseram, não tinham permissão para disparar. Os policiais lhes pediram então que emprestassem os fuzis
Famas para liquidar os atacantes, porém não conseguiram. Não se sabe
quantas vidas se perderam nesse lugar por semelhante absurdo.
Essa
comissão também revelou que três kamikazes que estavam no segundo andar do
Bataclan, torturaram e emascularam vários reféns
antes de assassiná-los. O informe transcreve a declaração de um membro da
brigada anti-criminal que os combateu nesse local. Ele
diz que alguns corpos de vítimas não foram apresentados a seus familiares pois haviam sido decapitados, degolados e
eviscerados. Disse que os olhos de outras vítimas
haviam sido arrancados, que os assaltantes, antes de ser abatidos ou de se fazer explodir, representaram atos sexuais sobre mulheres
e deram facadas em seus genitais. E que filmaram tudo. Não se sabe quem
tentou minimizar tais atos de barbárie dentro do ataque terrorista. O certo é
que esses fatos foram ocultados do público.
A briga pela negligência de Hollande se estende
dentro da própria esquerda. Malek Boutik, deputado socialista, declarou que tinha que adotar uma “nova
política de defesa” que implique mais a cidadania. Sublinhou
que a detecção prematura dos ideólogos do islamismo, do anti-semitismo, do ódio
anti-França, a detecção dos agitadores e verdugos islâmicos, é uma obrigação.
“A França
está em guerra, porém não utilizamos as armas da guerra”, resumiu por sua parte Eric
Ciotti, outro deputado do partido de Sarkozy. Ele insistiu no que outros
analistas dizem: que ante a ameaça durável “devemos mudar o marco, a
filosofia, a política e a dimensão do combate contra o terrorismo”.
Criticou o fato de que em defesa, justiça e segurança só se emprega 3% dos
recursos públicos e pediu a criação de centros de retenção para os indivíduos
assinalados como jihadistas.
Visivelmente emocionado e com uma cólera mal
contida, o ex-presidente Sarkozy, possível candidato presidencial de
seu partido, lançou, ao sair de uma missa na Catedral de Nice em memória
das vítimas: “Não vamos chorar a cada seis meses pelas vítimas. Não é
possível. Em algum momento, que chegará muito em breve, vamos ter que dizer as
coisas, não para dizê-las, mas para fazê-las”. No dia seguinte, ante um
estúdio de televisão, Sarkozy insistiu na tremenda responsabilidade de Hollande
e Valls no que está acontecendo.
Disse que desde o atentado contra Charlie
Hebdo, em janeiro de 2015, sete atentados ensangüentaram o país e 250
pessoas foram assassinadas. “Não fizeram o que deviam fazer”, disse. E fustigou a tentativa
de Hollande e Valls de impedir a discussão sobre o que está falhando. “Isso
é a democracia? O fechamento total do debate?”. Lembrou que desde há 18
meses o governo não abriu um só centro de retenção de jihadistas e que seu
partido havia exigido, sem ser ouvido, que seja fechada toda mesquita salafista
e que seja expulso da França todo imã que predique o ódio. “A guerra contra
o terrorismo islâmico é total: serão eles ou nós”.
Nas
semanas que vem haverá, pois, uma
intensificação do debate político, midiático e parlamentar, entre a direita e a
esquerda, sobre as deficiências do governo nestas matérias e sobre quais
políticas a França deve adotar rapidamente para quebrar a dinâmica das redes
islâmicas e como avançar na batalha terrestre na Síria e Iraque contra as
posições do chamado Estado Islâmico. Um debate
necessário que terá, forçosamente, como horizonte a campanha presidencial de
2018. Hollande ouvirá? A
desgastada ideologia socialista cederá ante a razão
gaullista-liberal-conservadora?
Tradução: Graça Salgueiro – Escrito por: Eduardo Mackenzie
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