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domingo, 8 de janeiro de 2017

Em Manaus, 'xerifes' romperam pacto com direção do presídio

Alguns presos tinham circulação livre, com a garantia de não haver distúrbios 

Ao fim da execução de 56 presos na mais sangrenta rebelião já registrada no Norte do país, o detento escolhido para conversar com o negociador, o juiz da Vara de Execuções Penais do Amazonas Luis Carlos Valois, parecia em choque.  — Já o tinha visto na penitenciária antes, eu me lembrava que o nome dele era Florêncio. Ele falava com a voz grossa e lenta, mantendo um mesmo tom. Era um ar sombrio. Não estava bêbado, mas falava como se estivesse. Não parecia frieza, era anestesia — conta Valois.
Policiais durante revista no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus - Parceiro / Sandro Pereira/Codigo19

Ao final da negociação para a liberação de reféns, ficou claro que os responsáveis pela matança não tinham demanda específica. Queriam passar uma mensagem cuja transmissão parece ainda em curso, sem previsão para acabar. Desde as primeiras horas de 2017, foram 93 mortos em três presídios do Amazonas e de Roraima, praticamente todos eles decapitados ou esquartejados, sob registro de câmeras de celular, em imagens que correram o mundo.

O Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) é gerido pela iniciativa privada desde 2014, mas sua direção nunca deixou de ser responsabilidade do Estado. O GLOBO apurou que o serviço de inteligência do Amazonas sempre soube que, intramuros, havia uma ética própria. Cada um dos pavilhões tinha um “xerife” autorizado a se movimentar livremente por todas as celas do complexo e apto a receber itens sem necessidade de revista. Em troca, ele entregava o que mais interessava à direção do presídio e à empresa que lucra com a superlotação da unidade: garantia de que não haveria distúrbios nas celas.

No primeiro dia do ano, este pacto foi quebrado.

XADREZ ENTRE FACÇÕES
A maior organização criminosa do Amazonas é a Família do Norte (FDN), fundada a partir da união de gangues de drogas de diferentes regiões de Manaus, cujos nomes eram sempre referências aos bairros de atuação.

Fortalecida não apenas pela aliança que a originou, mas também pela explosão do tráfico de cocaína do Peru e da Colômbia a caminho da rota do Rio Solimões, a facção é uma peça do intrincado xadrez jogado entre as duas principais organizações criminosas brasileiras: o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e o carioca Comando Vermelho (CV).

O avanço do PCC pelo país resultou em concorrência em áreas de negócios importantes não apenas para a FDN, no Amazonas, como para uma dezena de facções regionais. A solução das pequenas foi construir uma aliança nacional com o CV, como forma de equilibrar este tabuleiro. A FDN controla as rotas dos rios da região amazônica, escoa produção para a Europa via estados do Nordeste e ainda supre a demanda do CV.

Em setembro de 2016, CV e PCC anunciaram em comunicados enviados a presos de todo o país o rompimento definitivo do pacto de autoproteção de uma década, desencadeando o aumento da tensão em todas as pontas do tráfico de drogas brasileiro. Em outubro, 18 presos em unidades prisionais de Roraima e Rondônia foram mortos em ações atribuídas ao PCC.

‘MINORIAS’ DO PRESÍDIO FICAVAM SEPARADAS
No presídio de Manaus, a matança do primeiro dia do ano começou algumas horas depois da saída das últimas visitas do presídio, e foi concentrada em uma ala improvisada na entrada do Compaj, chamada de “seguro”. Por se tratar de unidade sob controle da FDN, a área reunia celas e pátio próprio para permanência de integrantes do PCC e das chamadas “minorias” do presídio — como estupradores, delatores e detentos que não queriam se associar a qualquer facção.

O primeiro preso a ser morto foi o ex-policial Moacir da Costa, o Moa, condenado por homicídio e tráfico de drogas, citado como simpático ao PCC. “A ordem é cobrar todo mundo que tá devendo”, foi o grito nos instantes que antecederam o início da barbárie.
Agentes foram sequestrados, presos e mortos a tiros e golpes de barra de ferro e facão. O resultado de 17 horas de rebelião seria recolhido na manhã seguinte pelos caminhões do IML.

O troco do PCC veio cinco dias depois, na unidade dominada por eles, a Penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Roraima. Não foram vitimadas lideranças graduadas da FDN e do CV por um detalhe: dois meses antes da chacina, elas tinham sido transferidas para a Cadeia Pública de Boa Vista, por estarem em risco. Ainda assim, novamente as vítimas foram estupradores, ex-simpatizantes da FDN e detentos que não queriam se associar a grupos.  — Foram mortes em diversas celas, de forma quase simultânea. Quando a polícia chegou, não havia nada a ser feito. Não destruíram patrimônio, não botaram fogo, não tentaram fugir. Estavam ali só para matar — relata um policial que participou da ação de retomada do controle da unidade onde presos convivem com esgoto, valas a céu aberto e infiltrações.

Nas dependências do IML em Manaus e em Boa Vista, familiares de detentos recebiam palavras de consolo de amigos, membros de igrejas e também de interlocutores das facções, que circulavam discretamente pelos locais, conforme identificaram os próprios peritos. Não à toa, mulheres de presos preferiam cobrir o rosto com panos e camisas, para não serem identificadas como viúvas de mortos de determinado grupo. Nas duas cidades, caminhões frigoríficos de alimentos foram improvisados para conservar os corpos mutilados, à espera de perícia.

MAGISTRADO CRITICA ‘LEGITIMAÇÃO DE LÍDERES’
Defensor da descriminalização das drogas (“veja a chacina, o sujeito que transportava uma substância foi condenado à morte”), o juiz Luís Carlos Valois diz estar abalado com o que viu no Compaj. Como juiz da Vara de Execuções, tenho que acreditar no ser humano. Não estou conseguindo acreditar nem em mim mesmo — afirmou.

O magistrado reconhece a força alcançada por grupos organizados, mas condena o que chama de “legitimação de líderes de facção”. Ele se pergunta qual seria diferença ao se identificar um preso como integrante do PCC, da FDN ou de qualquer outra organização, já que a lei não faz esse tipo de distinção e prevê penas e crimes que independem deste tipo de associação. Ele não vê perspectiva de mudança:  — Sabe por quê? É sempre mais bonito para a polícia, para o Ministério Público, para a imprensa, dizer que prendeu um líder de quadrilha, e não um “Zé Mané”. Como a gente vai acabar com o crime organizado se todo mundo gosta dele?


Fonte: O Globo

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