Vim para Manaus mais uma vez para aprender alguma coisa, mesmo que me traga tristeza pelo que ouviria e pelo baque na imagem externa do Brasil
Foi uma semana macabra. Não tenho notícia de tanta violência num
espaço fechado. O caminho dos policiais que entraram no presídio era
marcado por pedaços de corpos, colocados como aviso. Na porta de um dos
pavilhões, uma barricada de pernas, braços e cabeças. Vim para Manaus
mais uma vez para aprender alguma coisa, mesmo que me traga tristeza
pelo que ouviria e pelo baque na imagem externa do Brasil.
Recentemente,
escrevi um artigo sobre o nosso sistema penitenciário, que me parece
uma bomba-relógio. Lamentava um pouco o desinteresse com que o tema
sempre era recebido, mas alertava que infelizmente os presídios falam
por si próprios. No artigo, chamava a atenção para o fato de que, apesar
da necessária discussão sobre as condições da cadeia, havia um fato
mais recente que era o poder das organizações criminosas no interior dos
presídios. O que vi agora foi uma demonstração disso. Em vez de serem
neutralizadas, as organizações criminosas de uma certa forma são
legitimadas dentro das cadeias.
Aqui no Amazonas, a
legitimação passou por várias etapas. A Família do Norte, que hoje
esquarteja e faz coreografia com pedaços humanos, na eleição de 2014 foi
contatada por um membro do governo para discutir apoio. O áudio vazou, o
alto funcionário da segurança caiu. Quando a Polícia Federal fez uma
grande e bem-sucedida campanha contra a organização, surgiram nomes de
uma desembargadora e de um juiz que seriam aliados dos criminosos.
Precisei
ouvir a empresa terceirizada que administra o presídio. Não a encontrei
além dos humildes funcionários uniformizados. Ela se chama Umanizzare,
recebe cerca de R$ 4,6 mil por preso, quase três vezes o custo no
Sudeste. A empresa figura também como doadora de campanha política. Os
fatores locais, no entanto, não obscurecem a crise que o sistema vive
em todo o país. Aqui em Manaus, uma organização do Norte quer esmagar o
que considera invasores do Sul. Em Pedrinhas, no Maranhão, o conflito é
de grupos da capital contra os do interior. E os conflitos, às vezes,
repercutem nas ruas, na forma de sabotagem e queima de ônibus.
Além
dos necessários investimentos que resolvam problemas elementares como a
superlotação e a decadência das instalações, é preciso pensar no novo
problema. Como recuperar o controle dos presídios e estabelecer a lei lá
dentro? Sempre vi nesta questão uma das chaves para desarmar a
bomba-relógio. Tenho insistido que o instrumento básico em qualquer
projeto de controle é desenvolver o trabalho de inteligência nos
presídios. O esquecimento da sociedade brasileira em relação ao problema
é compreensível porque muitos acham que, uma vez presos, os criminosos
deixam de ser um problema. [correção: só após mortos é que os criminosos deixam de ser problema - exceto para o generoso governador do Amazonas que quer indenizar familiares dos bandidos abatidos nas FAXINAS ocorridas em Manaus.]
Na Inglaterra houve
experiência de trabalho de inteligência que reduziu o crime dentro da
cadeia. Aqui no Brasil, na década de 1990, cheguei a formular uma
proposta para reduzir motins. Ela consistia apenas numa central de
análise que receberia informes diários da situação do presídio. Muitos
motins são previsíveis e evitáveis. Infelizmente não foi o caso do
Complexo Penitenciário Anísio Jobim. Havia uma previsão de motim, ainda
assim ela se mostrou inevitável. As medidas de segurança foram
afrouxadas na passagem de ano: as mulheres dos presos poderiam pernoitar
e bastava apenas uma carteira de identidade para entrar. O governo
federal nem sequer foi informado da situação de risco no presídio. Num
esquema conectado isso seria impossível.[visita a bandido deve ser a exceção e não a regra; o ideal seria o confinamento dos presos em campos de concentração - seriam os 'gulags' da floresta - o que já seria um obstáculo às visitas e também a fugas e rebeliões.
Os 'gulag' foi um dos poucos legados úteis do tirano Stalin.
Abaixo uma definição resumida de 'Gulag":
Campos de trabalho forçado da ex-União Soviética (URSS), criados após a Revolução Comunista de 1917 para abrigar criminosos e “inimigos” do Estado.
Gulag era uma sigla, em russo, para “Administração Central dos
Campos”, que se espalhavam por todo o país.
Os maiores gulags ficavam em
regiões geográficas quase inacessíveis e com condições climáticas
extremas.
A combinação de isolamento, frio intenso, trabalho pesado,
alimentação mínima e condições sanitárias quase inexistentes elevavam as
taxas de mortalidade entre os presos. [no Brasil a inexistência de frio intenso, notadamente na selva, seria compensada por outros inconvenientes climáticos e as grandes distâncias.]
A quantidade de campos foi reduzida a
partir de 1953, logo após a morte de Stálin – ditador que expandiu o
sistema de gulags nos anos 30. Porém, os campos de trabalho forçado para
presos políticos duraram até os anos 90.
Não
adianta trabalho de inteligência quando não se extraem os dados. Mais
cabeças trabalhando com eles aumentam a chance de êxito. Ao encerrar meu
programa de TV aqui em Manaus, escolhi como fundo a Cadeia Pública, um
prédio de 1805 que estava destinado a ser um museu. Para ela foram
trazidos os prisioneiros que precisavam ser retirados do presídio Anísio
Jobim. Foi uma solução improvisada que dramatiza a decadência do
sistema no Brasil. Voltar a 1805 é um alívio. Nas circunstâncias,
significa um progresso. Em que época estavam aqueles corpos
esquartejados e amontoados numa caçamba? Um esforço nacional para
reconstruir o sistema penitenciário, por mais que existam divergências
pontuais, é uma das mais importantes frentes contra a barbárie.
Há
quem ache que os bandidos devam morrer mesmo e que esse caos provoca
uma espécie de limpeza, através dos massacres. Falei com uma estudante
universitária diante do Instituto Médico Legal. Ela procurava o irmão.
Desejei que não estivesse lá, entre os mortos. Ela respondeu: eu
preferia que estivesse. Os que falam apenas por opinião deveriam
examinar o quadro no conjunto: alegram-se com 56 mortos e se esquecem
dos 180 que fugiam no mesmo momento. [os que fugiram representam um problema de fácil resolução. É comum que fugitivos reajam à prisão, ação que autoriza a Polícia a usar a força necessária e proporcional e o preso ser abatido é algo muitas vezes inevitável.] Essas bombas
quando estouram atingem a todos, não importa o que você pense. Por isso é
uma tarefa nacional renovar o sistema penitenciário.
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