O problema do ministro Gilmar Mendes é que ele é casado com dona Guiomar Mendes. "Gil" mandou soltar um cliente de "Guio". Pode? Claro que não
J.R. Guzzo - Publicado na edição impressa de VEJA
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, é uma fotografia ambulante do subdesenvolvimento brasileiro. Não há nada de especial com ele — é apenas mais um, na multidão de altas autoridades que constroem todos os dias o fracasso do país. Mas o ministro habita o galho mais elevado do Poder Judiciário, e é ali, no fim das contas, que se resolve se o Brasil é governado sob o império da lei, como acontece obrigatoriamente nas nações bem-sucedidas, ou se, ao contrário, é governado segundo os desejos pessoais dos que mandam na vida pública, como acontece obrigatoriamente do Terceiro Mundo para baixo.
[IMPORTANTE: a presente matéria, excelente por sinal, perfeita, se aplica como uma luva para analisar situação idêntica vivida pelo procurador-geral da República;
é só efetuar uma mera troca de nomes e se constata, sem que caiba nenhuma réplica, sem que possa ser refutada, que sendo caso de impedimento do ministro Gilmar Mendes é também do procurador-geral da República, Rodrigo Janot:
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Com as decisões que tem tomado, tirando da cadeia milionários envolvidos no maior processo de corrupção da história nacional, Mendes optou por adotar a figura do clássico grão-magistrado de uma república bananeira — ele e mais outros tantos, entre os seus dez colegas do STF. Um requisito essencial para bloquear o desenvolvimento de um país é utilizar a lei para anular a eficácia da própria lei e eliminar as noções de “justo” e “injusto”. É como funciona, precisamente, a nossa mais alta corte de Justiça.
Todos sabem o que o ministro Gilmar Mendes acaba de fazer. Soltou o campeão nacional Eike Batista, empresário-modelo dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, preso no Rio de Janeiro por corrupção e outros crimes; em seguida, foi o voto determinante na decisão de soltar o ex-ministro José Dirceu, cuja folha corrida não cabe no espaço desta e das demais páginas da corrente edição. Não se vão discutir aqui, em nenhum dos dois casos, a hermenêutica, a teleologia, a holística e outras charadas da suprema doutrina jurídica, que nossos altos magistrados costumam utilizar para dar uma cara científica às suas sentenças — o autor deste artigo não entende nada de direito e, além do mais, seria inútil tratar de coisas incompreensíveis para qualquer mente humana em regime normal de operação.
O Brasil tem hoje 800 000 advogados, ou algo assim; já é gente demais para falar do assunto. O problema do ministro Gilmar Mendes é muitíssimo mais simples; ele é casado com dona Guiomar Mendes, e dona Guiomar Mendes trabalha no escritório de advocacia Sergio Bermudes, do Rio de Janeiro, muito procurado por magnatas em busca de socorro penal. Um deles é Eike Batista. Ou seja: “Gil” mandou soltar um cliente do escritório de “Guio”. Pode? É claro que não.
O ministro, pela interpretação normal da palavra integridade, teria de ter passado o julgamento de Eike para um de seus colegas; não pode estar no STF e, ao mesmo tempo, decidir causas em que sua mulher tem interesses. Ele e seus admiradores alegam que o ato não foi flagrantemente ilegal. Bom, só faltava que fosse — até as ditaduras mais soturnas tentam evitar decisões 100% ilegais. Mas foi, com certeza, flagrantemente esquisito. O argumento é que a sra. Mendes trabalha na área cível do escritório Bermudes, e Eike é um cliente da área criminal. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, não é mesmo? O fato de Eike sair ganhando foi apenas mais uma dessas extraordinárias coincidências da vida. Qual é o problema? O problema é o Código de Processo Penal. Ali se diz que um juiz não poderá julgar nenhuma causa em que seu cônjuge ou parente até o terceiro grau — vejam só, até o terceiro grau — for diretamente interessado. Tudo bem, o réu não é um cliente pessoal de dona Guiomar; o interesse dela na causa é apenas indireto. Mas esse “apenas” já não seria mais do que suficiente para o ministro Mendes se afastar do caso? Ele resolveu que não. Acha que os advogados de um mesmo escritório não ganham nada com a vitória de um de seus clientes mais notórios.
Mais ainda, o Código de Processo Civil, no Artigo 144, diz que um juiz está simplesmente proibido de julgar causas em que uma das partes é cliente do escritório do cônjuge — mesmo que essa parte, na questão a ser julgada, seja defendida por advogados de outro escritório. É evidente, para um cidadão honrado, que a regra mais rigorosa é também a mais correta. Mas sempre é possível achar na lei uma pirueta para legalizar aquilo que os julgadores querem que seja legal; há 500 anos eles estão achando saídas para tudo.
Contrariam o senso mais compreensível de justiça. Transformam qualquer coisa em fumaça. Têm horror ao que chamam de “pensamento leigo”. Acham a lógica comum uma ameaça ao estado de direito. Não estão preocupados em fazer justiça. O que querem é defender os próprios interesses ou — vá lá – suas ideias e suas vaidades pessoais. É uma história ruim.
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