Quanto mais as redes disseminam opiniões e informações, mais confundem, desorientam
Ao afirmar que poder popular não requer intermediários, pois está
organizado horizontalmente e opera em tempo real graças à internet, o
novo presidente da República apresentou, finalmente, uma ideia política.
Ele pode não ter sido claro e preciso, mas ao menos tocou numa questão
importante: num período de incertezas, em que proliferam movimentos de
protesto contra a incapacidade das instituições de gerir a vida
econômica e social do País, até que ponto a política é compreensível
para os eleitores?
Na complexidade da sociedade contemporânea, em cujo âmbito distintos
atores agem crescentemente em esferas cada vez mais globais, as práticas
políticas mudaram de forma, caráter e alcance. Com isso puseram em
novos termos o exercício da cidadania, não pela falta de informações,
mas pela abundância de mensagens. Transmitidas pelas redes sociais, o
que facilita a difusão de todo tipo de opiniões sem nenhum critério ou
hierarquização, essa abundância de informações é problemática, pois
tende a desviar o foco dos temas fundamentais, provocando mais confusão
do que compreensão. Quanto mais disseminam informações e opiniões, mais
as redes sociais confundem e desorientam.
Contudo a sociedade não se tornou mais complexa apenas por sua dinâmica
natural. As novas formas de ação política propiciadas por instrumentos
digitais também ajudaram a aumentar o nível de complexidade social. As
novas práticas políticas questionam a autoridade estabelecida,
diversificam as possibilidades de ação e ampliam o campo do que é
politicamente discutível. E ao lado dos mecanismos tradicionais de
representação, como partidos e sindicatos, que já não dão conta da
complexidade socioeconômica, multiplicaram-se ONGs que se mobilizam por
meio de redes, o que lhes permite ultrapassar fronteiras territoriais,
corroendo os espaços delimitados que serviam de referência na época em
que tudo girava em torno do Estado-nação.
Decorre daí o sentido da indagação acima: a política é compreensível
para os eleitores? Nesse cenário, a política tradicional tem se revelado
incapaz de mostrar ao eleitorado o conjunto da sociedade e de seus
atores, lógicas e discursos. Quando uma crise política eclode, é porque
as práticas políticas não conseguem cumprir um de seus papéis básicos – o
de tornar a sociedade visível a si mesma, facilitando sua
inteligibilidade pelos cidadãos que a integram. Diante dessa
incapacidade de compreender o que determina sua vida, os eleitores
tendem a ficar confusos, deixando-se levar por indignações não
construtivas e metáforas mobilizadoras. É possível recuperar a
legitimidade estabelecida pela democracia representativa tradicional? Há
alternativas a ela? Questões como essas têm sido discutidas, entre
outros, pelo filósofo espanhol Daniel Innerarity, hoje em evidência na
Europa. Ele tem uma visão crítica das redes sociais.
A seu ver, elas manipulam consumidores passivos de informações, não
conseguem servir de instrumento para a articulação democrática da
complexidade institucional. Mas vê com otimismo a possibilidade de se
ampliar o processo democrático, com base na ideia do que chama de
“sociedades inteligentes”, que remetem à imagem de organizações capazes
de aprender, analisar e decidir coletivamente, abrindo-se a novos temas,
aumentando o número de protagonistas e tornando viáveis formas de
atuação que transcendam a relação vertical entre líderes e liderados. À
medida que a complexidade de um sistema democrático aumenta, afirma, a
tendência é que cresça o número de recursos cognitivos de que os
eleitores necessitam, abrindo caminho para o fortalecimento de uma
cultura política mais reflexiva e sofisticada.
Sociedades efetivamente democráticas são capazes de aprender por meio de
dispositivos institucionais de inteligência coletiva e de reflexão
sobre experiências de aprendizagem comunitária. A democracia é inviável
quando não se consegue compreendê-la. Se os eleitores não forem capazes
de entender o que está em jogo, a liberdade de opinião é inócua. Nesse
caso, as redes sociais levam os eleitores a satisfazer seus desejos
imediatos, sem valorizar horizontes de responsabilidade e noções
elementares de direito. As sociedades que se polarizam em torno de
antagonismos maniqueístas não forjam uma democracia sólida. “Uma opinião
pública que não entenda a política e não seja capaz de julgá-la pode
ser facilmente instrumentalizada ou enviar sinais equivocados para o
sistema político”, diz Innerarity.
Essa confusão explica comportamentos políticos regressivos, como as
simplificações populistas e a inclinação pelo autoritarismo – fatores
que têm sido responsáveis pela decomposição das bases políticas de
grupos de centro-direita ou de centro-esquerda. Nessa perspectiva, a
política é reduzida a um teatro, já que suas operações têm apenas valor
de entretenimento, dada a preferência dos eleitores pelos escândalos e
pelas mensagens desqualificadoras de políticos em vez do intercâmbio de
argumentos e de propostas, afirma Innerarity em seu último livro,
Compreender la democracia. “O escândalo limitado ao comportamento de
alguns poucos despolitiza o juízo acerca da sociedade em que vivemos.
São esses esquematismos quase inevitáveis que explicam o fato de que os
eleitores não votam com base de acordo com programas políticos, mas sim
com base na personalidade do candidato, deixando-se levar facilmente por
estereótipos, prejulgamentos e categorizações que levam o que é
complexo por princípio ao nível do que lhes é familiar”, conclui.
José Eduardo Faria - O Estado de S.Paulo
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