O
contrário da aversão primária ao Supremo Tribunal Federal é o entusiasmo
ingênuo que aceita todas as presunções da Suprema Corte a seu próprio respeito.
Isso inclui concordar com a tese segundo a qual Dias Toffoli tem uma missão na
Terra de inspiração divina e, portanto, inquestionável. "Pode espernear à
vontade, pode criticar à vontade", disse Alexandre de Moraes, relator do
inquérito secreto aberto por Toffoli para investigar os inimigos da Corte.
"Quem interpreta o regimento do Supremo é o Supremo. O presidente abriu, o
regimento autoriza, o regimento foi recepcionado com força de lei e nós vamos
prosseguir."
O
inquérito sigiloso aberto na semana passada por Toffoli visa estancar uma onda
de fake news que engolfa o Supremo nas redes, identificar autores de ameaças
virtuais aos ministros e seus familiares, responsabilizar procuradores da Lava
Jato por supostos insultos e punir auditores do Fisco acusados de constranger
magistrados com fiscalizações imotivadas. Se o Brasil fosse regido pela lógica,
Toffoli requisitaria a abertura de inquérito à Procuradoria-Geral da República.
Ele preferiu, porém, agir "de ofício", por conta própria. Escorou-se
no artigo 43 do regimento interno do Supremo, que vai reproduzido abaixo.
“Art. 43.
Ocorrendo infração à lei penal na sede ou
dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver
autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a
outro Ministro. ”
Qualquer criança minimamente alfabetizada percebe que o artigo que
Moraes diz ter sido corretamente interpretado por Toffoli prevê que o
presidente do Supremo poderia ter instaurado inquérito se o crime a ser apurado
tivesse ocorrido "na sede ou dependência do tribunal". Como não foi
isso que se passou, Toffoli tem dificuldades para garantir a adesão
incondicional à sua gambiarra jurídica até mesmo entre os colegas de trabalho.
Uma banda do Supremo faz uma oposição muda. Outra banda começa a fazer barulho.
Marco Aurélio Mello levou os lábios ao trombone: "O que ocorre quando nos
vem um contexto que sinaliza prática criminosa? Nós oficiamos o procurador-geral
da República, nós oficiamos o estado-acusador. Somos estado-julgador e devemos
manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de
persecução criminal". Luiz Fux também ergueu a voz: "Evidentemente que
eu respeito a opinião dele (Toffoli), mas acho que ele vai mandar para a
procuradora-geral (Raquel Dodge). Não tem como não mandar para a PGR. E não tem
como inibir a PGR de trazer novos elementos."
É até natural que certas togas, embevecidas por uma supremacia que
exclui o componente da dúvida, desenvolvam seus mitos de excepcionalidade. Mas
é inédita na história da Corte essa pretensão de Dias Toffoli de ser uma
potência moral que só deve contas à sua própria noção de superioridade e seu
indiscutível destino moralizador. Inédita também é a fidelidade com que
Alexandre de Morais se dispõe a emprestar sua mão de obra e seu gênio jurídico
ao mito de onipotência do presidente do Supremo. "Não se pode permitir, em
um país democrático como Brasil, em que as instituições funcionam livremente há
30 anos, que, porque você não gosta de uma decisão, você prega o fechamento da
instituição republicana, você prega a morte de ministros, morte de
familiares", declarou Moraes. "Isso extrapolou, como bem disse o
ministro Celso de Mello, o nosso decano, isso extrapolou a liberdade de
expressão. A liberdade de expressão não comporta quebra da normalidade
democrática e discurso de ódio". O ministro está certo, muito certo,
certíssimo. Admita-se que as sombras escondam elementos que justifiquem a
investigação. Isso não autoriza o Supremo a perder o recato que lhe resta.
Uma parte
do Supremo ainda não notou. Mas esgotou-se aquele tempo em que a sociedade
concedia autorização tácita para que as supremas togas fossem o que imaginavam
ser e cumprissem sua missão divina, mesmo que a Justiça Eleitoral virasse, num
julgamento de placar tão apertado quanto um 6 a 5, o novo foro privilegiado
para salvar larápios. A transparência de copo de requeijão e os lugares-comuns
da retórica de Alexandre de Moraes —"Não existe democracia sem
independência do Poder Judiciário, isso vai ser investigado a fundo"— não
livrarão o Supremo de ser colocado permanentemente em xeque.
Há algo de sádico na maneira pela qual os próprios ministros do Supremo
se colocam na berlinda com suas sentenças contraditórias, seus pedidos de vista
protelatórios, seus réus de estimação, sua política de celas abertas… Mas esse
sadismo não é menos necessário para acordar a cidadania de sua letargia do que
para a educação democrática dos magistrados. Decisões do Supremo, como se sabe,
devem ser cumpridas. Mas o sacrossanto direito à crítica é inalienável. Há
ameaças na rede? Procuradores caluniaram? Auditores exorbitaram? Pois que sejam
abertos os inquéritos. Que corram sob a luz do Sol, pelos canais competentes,
sem a necessidade de esperneios. Inquérito secreto é ferramenta imprópria, um
pé de cabra do arbítrio.
Vivo, Freud daria um
conselho a Bolsonaro: pare de falar dez vezes antes de pensar.... - Veja
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imprópria, um pé de
cabra do arbítrio.... - Veja mais em
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