A complicada relação entre humanos e automação é agravada por populismo barato
O conselho mais sábio dado por instrutores de voo a jovens pilotos é
também o mais antigo: em caso de pane, voe o avião (está lá no filme
Sully, do famoso pouso no Rio Hudson em Nova York). Significa
simplesmente utilizar de maneira coordenada pés e mãos, e pilotar a
máquina até chegar lá embaixo, como fez o Capitão Sully.
Então como entender que engenheiros projetaram um sistema de
computadores que interfere diretamente na atitude do avião (nariz para
baixo, no caso) somente quando o piloto automático NÃO está acionado, ou
seja, o avião está sendo voado pelo ser humano? É o caso do Boeing 737
Max 8, obrigado a ficar no chão ou proibido de voar no espaço aéreo de
dezenas de países depois de dois acidentes fatais levantarem a suspeita
de que pilotos não conseguiram lidar ou foram driblados por modernos
sistemas automáticos.
A questão está longe de ser meramente técnica. Na verdade, é
profundamente filosófica, e por consequência política, e tem a ver com a
relação entre humanos e automação. Modernos aviões comerciais voam
contro ados por sistemas que “protegem” os pilotos de si mesmos, isto é,
sensores levam computadores a agir diretamente na pilotagem se dados
essenciais como velocidade, por exemplo, estiverem fora de limites
fixados num software.
No já clássico The human factor, de William Langewieche, que trata da
tragédia do AF447 entre Rio e Paris, em 2009 – talvez o melhor texto
jamais escrito sobre um grande acidente aeronáutico – verifica-se que é a
automação que permitiu eliminar grande parte do “fator humano” e dar
enorme segurança ao transporte aéreo. Mas o “fator humano” é o decisivo
quando pilotos educados a confiar na automação se desorientam na
ausência dela – caso dos pilotos do AF447, surpreendidos pelo
desligamento dos computadores depois de uma pequena falha de um sensor
de velocidade, e que não conseguem “voar o avião”.
No extremo oposto, como parece ser o caso de pelo menos um acidente
fatal envolvendo o 737 Max, os pilotos aparentemente lutaram para manter
o avião sob controle nas mãos mas, o computador, novamente por culpa de
dados errôneos de sensores, insistiu em jogar o nariz para baixo
provocando um mergulho fatal. “Automation surprise” chama-se no jargão
técnico esse súbito pesadelo de duas faces: a desorientação do piloto
quando os sistemas automáticos não fazem o que se espera que deveriam
fazer, ou, ao contrário, quando fazem o que não deveriam.
A questão é política pois são entidades governamentais que certificam a
segurança de aviões, fiscalizam a aplicação de medidas, obrigam (ou
cedem, depende) grandes fabricantes a seguir ou alterar normas, com
enorme impacto econômico, psicológico e social numa indústria
competitiva e dominada por poucos. E de imenso apelo emocional ao
público, para o qual o debate sobre quem manda na máquina, o piloto ou o
computador, só torna o voo uma coisa ainda mais misteriosa.
E tanto é político que esse apelo se tornou irresistível para populistas
como Donald Trump. Acreditando equivocadamente que sistemas de alta
complexidade de segurança de voo criam apenas mais perigos em troca de
vantagens mínimas, além de serem caros e demandarem a complexa formação
de profissionais, Trump foi ao Twitter declarar que preferia não ter um
Albert Einstein como piloto e, sim, gente que fosse autorizada a rápida e
facilmente assumir o controle do avião. Aguardou as reações. E aí
mandou o avião ficar no chão, sem esperar a FAA, a agência reguladora.
Claro que não é possível comparar o escritório de trabalho de um chefe
de Estado como Trump com o cockpit de uma moderna aeronave comercial.
Mas provavelmente só em - palácios de governo é que simplórios conseguem
ficar tanto tempo no comando.
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