Demétrio Magnoli
Constituição de 1988 criou um poder sem controle externo e sem limites jurisdicionais
Quanto vale a palavra de Rodrigo Janot? O então procurador-geral entrou
armado no STF com a finalidade de matar Gilmar Mendes e, na sequência,
tirar sua própria vida. Verdade? Mentira? Delírio de um mitômano? No
fundo, pouco importa. O conto deve ser lido alegoricamente, como
parábola de uma colisão engendrada há três décadas, na hora em que os
constituintes esculpiram o atual Ministério Público.
Nos artigos 127, 128 e 129, a Constituição criou um poder sem controle
externo e sem limites jurisdicionais. [o MP nos moldes criados pela Constituição se alinha a outras 'genialidades' da 'constituição cidadã' que, são inúmeras, destacamos:
- o artigo 5º: o absurdo de constitucionalizar uma regra que só cria direitos sem estabelecer a contrapartida (pesos e contrapesos) de deveres;
- criar o MP, nos moldes de um 4º Poder, - inexistente no texto constitucional - pairando sobre o Estado, impondo regras - quando cabe a ele mais fiscalizar que determinar] O MP paira sobre o Estado, não
respondendo a nenhum dos três Poderes. [o fato de não responder a nenhum dos Poderes, o coloca acima e na condição de O Poder dos Poderes.] Nas suas próprias palavras, opera
como “uma espécie de Ouvidoria da sociedade brasileira”, exercendo a
“tutela dos interesses públicos, coletivos, sociais e difusos”. Dito de
outro modo, o MP não seria uma Ouvidoria da aplicação das leis, mas um
tradutor do “interesse geral”.
Ninguém percebeu à época, mas dava-se à luz um Partido, com “P”
maiúsculo —isto é, uma entidade política singular, que supostamente
representa toda a sociedade e não precisa passar pelo filtro das urnas. O
MP tornou-se um recipiente perfeito para gerações de jovens promotores e
procuradores engajados na reforma social por meio do sistema de
justiça. Política é a arte de explicitar e solucionar as divergências por vias
pacíficas. As divergências que atravessam as sociedades coagulam-se em
partidos. Nos sistemas totalitários, elas não desaparecem, emergindo sob
a forma pervertida de facções clandestinas no interior do partido
único.
O MP, concebido como Partido, fragmenta-se necessariamente em diferentes
partidos, que refletem traduções conflitantes do “interesse geral”. O Ministério Político não é um, mas vários. Pela esquerda, em 1991,
surgiu o chamado Ministério Público Democrático (MPD), hoje com mais de
300 associados. Pela direita, em 2018, nasceu o chamado Ministério
Público Pró-Sociedade, que organiza seu 2º Congresso Nacional. “Nós dois
lemos a Bíblia noite e dia, mas tu lês preto onde eu leio branco”
(William Blake). Os dois leem as mesmas leis, mas cada um as interpreta
segundo seu programa político particular.
O Janot do conto, pistoleiro suicida, encontra seu lugar no Janot da
história. O momento de seu propalado gesto de loucura inscreve-se numa
sequência de atos políticos: no 8 de maio de 2017, o procurador-geral
pediu a suspeição de Gilmar no caso Eike Batista; no dia 17, vazou o
áudio do diálogo explosivo entre Joesley Batista e Michel Temer; no 23,
publicou um artigo de denúncia do “estado de putrefação de nosso sistema
de representação política”.
Numa “estranha aliança do sublime com o obsceno” (Octavio Paz), o
cavaleiro andante da limpeza pública faria a justiça verdadeira com o
projétil de uma pistola, eliminando a justiça monstruosa, corrompida,
inventada pela Constituição.
A vocação dos partidos é perseguir a conquista do poder. Naquele maio,
Janot construía o trampolim de sua candidatura presidencial, fincando-o
sobre um pacto profano com Joesley Batista.
A politização do MP atingia um clímax, empurrando seu chefe à guerra
aberta com o Executivo e à uma tentativa, no fim frustrada, de submeter a
seus desígnios o Congresso e o STF. Quatro meses depois do pedido de suspeição de Gilmar, um desmoralizado
Janot ergueu a bandeira branca e, em gesto de rendição, solicitou a
revogação da imunidade de Joesley. A colisão do Ministério Político com as instituições não desaparece
junto com a desgraça do ex-procurador-geral. Hoje, a candidatura
presidencial de Sergio Moro concentra o projeto de poder do Partido dos
Procuradores. A nossa Operação Mãos Limpas, tão necessária, dissolve-se
numa lagoa viscosa e ilegalidades, um pesque-pague para as defesas de
corruptos e corruptores. O conto de Janot, mais que roteiro potencial de um filme, é uma lição política. Vamos estudá-la?
Demétrio Magnoli, sociólogo - Folha de S. Paulo
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