O país já passou a marca dos 100
milhões de totalmente vacinados contra a covid, ou de 150 milhões com
pelo menos uma dose — um bom exemplo mundial. Em suma: o que interessa,
mesmo, está razoavelmente de pé, e isso não é assim tão pouca coisa. (Na
Venezuela, por exemplo, a produção de 3 milhões de barris diários de
petróleo caiu para 1 milhão. Pontes vão desabando aos poucos e as
autoridades deixam cair, porque ninguém sabe como consertar. A inflação
nos últimos 12 meses foi de 2.600%. O dia a dia é uma calamidade — e lá,
claramente, existe governo demais. Ou seja: ter governo, mas governo
ruim, não adianta nada.)
O governo não consegue, sequer, baixar uma portaria
lembrando que o cidadão tem o direito legal de não ser demitido do
emprego caso se recuse a tomar vacina
O problema é que no Brasil de hoje não existe governo nenhum no alto
da árvore. Quem tem a obrigação legal, política e moral de governar não
está governando [foi eleito para isso] — ou, muito pior ainda, um dos Três Poderes está
impedindo ativamente os outros dois de governarem, com a ilusão de que
governa tudo; no fim das contas, acaba sem governar nada, pois o que
governa é apenas a desordem.
Não há mais uma Constituição em vigor; ela é
desrespeitada, caso após caso, pelo Supremo Tribunal Federal. Não há
segurança jurídica, pois cidadãos e empresas não sabem, simplesmente, se
a lei de hoje é a mesma de ontem, e se vai estar valendo amanhã.
Ninguém sabe, também, se quando o Congresso aprova algum projeto é à ganha ou é à brinca.
Juízes, procuradores e outros barões da Justiça, que dão a si próprios
salários de R$ 80.000 por mês, ou mais, paralisam quando bem entendem a
administração pública. Decisões econômicas cruciais não podem ser
tomadas. A lei diz que não pode haver presos políticos no Brasil; há
presos políticos no Brasil. A lei garante a liberdade de expressão; as
pessoas são punidas por expressarem suas opiniões. Investigam-se,
julgam-se e punem-se crimes que não existem no Código Penal Brasileiro,
como o de “desinformação”, ou o de fake news. Não há mais
independência de Poderes; o Congresso e o Executivo nunca sabem, nunca
mesmo, se as suas decisões vão valer ou não. Se isso não é desordem,
então o que é?
O Executivo, com certeza, não manda nada. Mandar como, se as suas
decisões mais simples são abertamente desrespeitadas?
O governo não
consegue, sequer, baixar uma portaria lembrando que o cidadão tem o
direito legal de não ser demitido do emprego caso se recuse a tomar
vacina.
É uma coisa elementar. Mas o Ministério Público “do Trabalho”,
que existe para proteger os empregos, diz que a decisão não vale; o
prefeito de São Paulo diz que não vai aplicar a instrução e fica tudo
por isso mesmo.
O presidente Jair Bolsonaro quis nomear, como é seu
direito legal, um diretor para a Polícia Federal; o STF proibiu, mandou
nomear outro e foi obedecido. A cada 5 minutos, o mesmo presidente
recebe de algum dos dez ministros do Supremo um prazo de “cinco dias”,
ou coisa que o valha, para “explicar” por que fez isso ou aquilo. Uma
entidade pública legalmente vinculada ao governo federal, a Fundação
Palmares, está proibida de demitir qualquer funcionário, por qualquer
motivo que seja — um caso provavelmente único no mundo. O presidente da
República, de novo ele, é censurado abertamente pelas “redes sociais” —
qualquer YouTube ou Twitter da vida se dá o direito de proibir o homem
de falar, ou de selecionar o que ele fala.
O governo não consegue levar uma linha de transmissão de energia
elétrica para um Estado inteiro, o de Roraima, porque meia dúzia de
índios e o Ministério Público não deixam. Não consegue, da mesma forma,
construir uma ferrovia estratégica para o interesse público porque seu
traçado passa em menos de 0,1% de uma “floresta nacional” — nem executar
o seu projeto de “escola sem partido”, para limpar um pouco os
currículos escolares da sua carga política e ideológica de esquerda. A
administração federal está infestada por milhares de nomeações políticas
feitas nos governos de Lula e Dilma Rousseff; os beneficiados não se
subordinam aos seus superiores hierárquicos, mas à orientação do PT e de
seus partidos auxiliares.
O governo foi proibido de bloquear verbas de
Goiás retidas por falta de pagamento das dívidas estaduais; a mesma
coisa aconteceu com a Bahia.
Durante a covid, especialmente, o Supremo
deitou e rolou em cima da Presidência — a começar pela mais
extraordinária decisão de todas, a que criou 6.000 repúblicas dentro do
país, ao dar às “autoridades locais” independência quase absoluta para
cuidar da epidemia. (Por conta disso, até hoje, dois anos letivos
depois, há prefeitos que mantêm fechadas as escolas municipais.)
Não há nada que o STF tenha deixado de fazer para combater o governo.
Bolsonaro foi intimado a “explicar”, em tantos dias, o decreto que
facilitava o porte de armas, o corte de 30% nas verbas das universidades
federais e o “Programa Verde Amarelo”. Exigiram, da mesma forma, que
ele “explicasse” declarações que fez a respeito do pai do advogado
Felipe Santa Cruz, presidente da OAB e destaque no atual palanque da
oposição, sobre a ex-presidente Dilma Rousseff e sobre o jornalista
americano Glenn Greenwald. Bolsonaro foi proibido de extinguir os
“conselhos federais”, dinossauros burocráticos que prosperam sem
controle de ninguém em Brasília.
A medida que transferiu a demarcação de
terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura, um passo
mínimo para enfrentar as fraudes na área, foi suspensa. Também foi
cancelada a decisão de dispensar as empresas da obrigação de publicarem
seus balanços em veículos de “grande circulação”. Foi anulada,
igualmente, a extinção do “seguro obrigatório” para carros, o infame
DPVAT.
Dá
quase uma por semana. Faz algum sentido um negócio desses?
Com o Congresso, o desastre é o mesmo. Até outro dia, numa aberração
que jamais será explicada, a Câmara dos Deputados do Brasil era a única
Casa parlamentar do planeta a aceitar que um dos seus membros, em pleno
exercício do mandato, estivesse na prisão — ficou preso nove meses,
aliás, por decisão pessoal de um ministro do STF. Foi um momento
realmente extraordinário. O deputado não foi cassado em nenhum momento
pelo plenário da Câmara.
Recebeu todos os seus salários e vantagens. Seu
suplente não assumiu. Com o mandato válido, poderia perfeitamente ter
votado — mas não podia comparecer às sessões porque estava na cadeia, e
não foi permitido, também, que ele votasse em esquema de xadrez-office, ou de teletornozeleira.
Durante toda a sua prisão, como mostra a reportagem de capa desta edição,
os 513 deputados federais da República aceitaram como coelhos
assustados o ministro Alexandre de Moraes mandando chover e fazer sol;
se tivesse decidido que o deputado Daniel Silveira ficaria preso pelo
resto da vida, ninguém iria fazer nada. Que autoridade pode ter um
Congresso desses? [os Estados Unidos estão ignorando a ordem de extradição do blogueiro Allan dos Santos e também a de prisão - não dão nenhuma explicação. Talvez a motivação seja falta de amparo legal em ambas as determinações. Desagradável será se o juiz Alexandre de Moraes determinar que o presidente informe em cinco dias as razões do silêncio dos ianques. O presidente terá que informar que o tratado de extradição firmado entre o Brasil e os irmãos do Norte, só autoriza extradição, quando o extraditando cometeu atos que são tipificados como crimes em ambos os países.
O presidente do Senado foi obrigado pelo ministro Luís Roberto
Barroso, como quem dá ordens a um subordinado, a aceitar a realização da
sinistra “CPI da Covid” Esse mesmo Senado morre de medo da ideia de
examinar a conduta dos ministros do STF, como é seu direito e sua
obrigação legais — os senadores passam mal só de ouvir falar no assunto.
A lei criando o voto “impresso”, ou com comprovante de votação, foi
aprovada de forma aberta e legítima pela Câmara; foi anulada,
simplesmente, pelo mesmo ministro, e votada uma segunda vez — aí, com
uma decisão aprovada pelo STF.
Ainda agora, a lei do pagamento das
emendas parlamentares, que representa exatamente a vontade da maioria
dos deputados e foi aprovada da maneira mais lícita que se possa
imaginar, foi vetada pelo STF. A ministra Rosa Weber, com o apoio dos
colegas, decidiu legislar diretamente em lugar dos deputados: baixou uma
série de ordens a que a Câmara deve obedecer em relação à matéria
aprovada.
Não há nenhuma razão lógica, administrativa nem constitucional
para isso — a nova lei, morta ao nascer, é pura e simplesmente a
decisão legítima de uma Câmara dos Deputados legalmente eleita.
Sua
anulação é apenas mais uma demonstração de que o Supremo continua dando a
si próprio, como faz o tempo todo, o direito de dizer se as leis
aprovadas pelo Congresso Nacional valem ou não valem — e como,
exatamente, elas devem ser.
Não interessa se a lei das emendas “do relator” é boa ou é ruim — se
ela foi aprovada legalmente pelo Poder Legislativo, o STF não tem nada a
ver com isso. Tem apenas de aceitar, como o Executivo e o resto da
nação. Mas os ministros, cada vez mais, acham que cabe a eles decidir o
que é bom e o que não bom para o Brasil.
Seu trabalho não é mais aplicar
a Constituição, mas decidir como o país tem de se comportar, da
publicação de anúncios de sociedades anônimas à venda de seguros de
carro, em nome do superior bem de “todos” — isso quando não estão
ocupados em decidir o que é a verdade e enfiar gente na cadeia por fake news e atos contra o seu estilo de democracia.
Os ministros têm uma capacidade praticamente ilimitada para fazer o mal, mas quase nenhum repertório para fazer o bem
A atuação do STF não é neutra. É perfeitamente inútil esconder os
fatos: dos dez atuais ministros do STF, sete foram nomeados por Lula e
Dilma. Como é possível pretender que, uma vez no Supremo, eles deixaram
de ser quem eram e passaram a se conduzir como juristas imparciais?
O
mundo político, a mídia e a elite podem fazer de conta que uma coisa não
tem nada a ver com a outra, mas é óbvio que tem tudo a ver; na verdade,
só tem a ver.
As decisões do STF, assim, são as decisões de um partido
político de oposição e geralmente de esquerda — aliás, virou um hábito
de o PT e seus satélites recorrerem ao Supremo, e ganharem, a cada
derrota que sofrem em votação no plenário.
E a confirmação da
independência do Banco Central, aprovada em lei no Congresso?
E a recusa
do Tribunal Superior Eleitoral, um derivativo do STF, em anular a chapa
Bolsonaro-Mourão?
São, de fato, decisões que saem da “curva” do
tribunal, mas e daí?
O conjunto da sua conduta compõe uma condenação
maciça aos dois outros Poderes, o Executivo e o Legislativo, ambos
eleitos livremente pela população brasileira — o que não tem nada a ver
com as funções e os deveres constitucionais da mais alta Corte de
Justiça do país.
O grande problema para o Brasil, nessa salada, é que o STF não deixa o
governo nem o Congresso governarem, mas também não consegue, ele
próprio, governar o que quer que seja — cria a baderna jurídica,
política e administrativa na sociedade, e fica flutuando acima dela,
impotente para gerir problemas da vida real e sem responsabilidade pelas
ruínas que cria. Os ministros têm uma capacidade praticamente ilimitada
para fazer o mal, mas quase nenhum repertório para fazer o bem; o
resultado é isso que se vê aí.
Cada vez mais, os ministros se comportam —
quase sem exceções — como o chefe que grita nas reuniões e acha que
está impondo respeito, quando está apenas demonstrando falta de controle
sobre si mesmo. É evidente, olhando com um pouco mais de atenção o que
dizem nas suas decisões, que “caiu” o sistema em que se processa a
atividade mental de suas excelências. Em algum lugar do circuito, um fio
acabou desencapado — e o resultado é o espetáculo de ministros lançando
bulas de excomunhão para castigar os culpados pela “polarização entre
Poderes”, a “animosidade” na população, “ataques contra agentes
políticos” e uma penca de disparates do mesmo tamanho. Como assim?
Nada
disso, obviamente, é proibido por lei. Desde quando dar notícias
apresentadas “de forma parcial” é um crime, um desvio moral ou uma
ameaça “à democracia”? Não tem mais muita coisa a ver com sanidade; tem
tudo a ver com jurista de ditadura bananeira lendo sentença de
condenação contra preso político.
Governar não é isso.
Leia também “A polícia das ideias”
J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste